Memórias


Estacionei mesmo ao lado do carro dela, ocupada a fingir que não me via. Já vinha atrasado e entrei apressado, nervoso, quase a medo, quase sem saber o que fazer, o cheiro dela por todo o lado, invadiu-me, fez-me recordar, doeu-me. Encolhida atrás do volante, ela também não sabia onde pousar o olhar, o que fazer com as mãos, comigo, com ela mesma. Sabia, sim, que era a última vez que nos víamos e isso consumia-nos. Consegui emprestar alguma naturalidade ao momento, mas apenas por breves segundos, porque quando dei por mim as palavras já tinham saído, então queres acabar?

Acho que chovia, não me lembro. O meu mundo estava todo ali, encerrado naquele carro. Ou o que tinha sido o meu mundo nestes últimos anos, aquele amor adolescente, clandestino, intenso. Aqueles olhos, aquela boca, aquele jeito tão dela. Tão minha. Ainda ontem acordámos juntos e hoje estamos aqui, tão perto de ficar tão longe. O amor, para onde foi o amor? Pedi-lhe tantas vezes que ficasse. Que nos deixasse continuar a construir memórias. Pedi-lhe muita coisa mas ela esqueceu-se de me ouvir.

Criar memórias. Contigo. Connosco. São elas que me invadem quando preciso de ti e não estás por perto.

Respondeu-me que sim, que queria acabar e riu-se, um riso à beira das lágrimas, de quem tem medo de começar a chorar e já não ser capaz de parar. Calou-se e eu senti necessidade de preencher o silêncio, como se com as minhas palavras pudesse consertar o que já tinha sido desfeito, como se pudesse prolongar pela eternidade a sensação que é tê-la aqui, a ouvir-me, tão perto que basta estender o braço para lhe tocar, mas já tão longe que nem as palavras nos poderiam salvar.

Há pessoas e depois existes tu. Fica desse lado. Não para sempre porque eu quero bem mais do que isso.

Abraço-a pela última vez. Não mais os instantes que fazem parar o tempo, não mais as minhas mãos no seu cabelo, o cheiro dela a embriagar-me, não mais o nós que criámos, não mais. Digo-lhe o quanto gosto dela e sinto-a estremecer, fecha os olhos, engole em seco, fica em silêncio. O momento chegou e nenhum dos dois sabe como pôr-lhe um fim. Viro costas sem me despedir e saio do carro dela pela última vez. Vou para casa e choro até a cara ficar deformada. Penso no que estará ela a fazer. Penso se porventura pensará em mim. E desejo mais do que nunca, do fundo do meu coração amachucado, desejo que esteja feliz. 

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