Histórias


A excitação das prendas tinha terminado. Os coloridos papéis de embrulho espalhavam-se no chão e os brinquedos estavam já adormecidos pelos cantos, após horas de euforia. O avô ressonava na poltrona e o pai fumava na varanda com os tios, enquanto a mãe enganava a balança com umas colheres de arroz doce. A avó pousou o livro que estava a ler. Levantou-se, pôs uma acha de lenha na lareira, espevitou o lume, acomodou o xaile nos ombros. Foi de imediato rodeada pelos netos, um turbilhão de vozinhas em coro a pedinchar que lhes contasse uma história. Sorriu, sentou-se no banquinho perto do lume, puxou o mais novo para o colo, a cara afogueada das correrias, os caracóis castanhos em desalinho. A avó olhava para aquele neto e via-se a ela, há tantos anos que pareciam quase impossíveis de contar, o mesmo rostinho pálido, a mesma revolução no cabelo indomável, os mesmos olhos cor de céu que pediam mundo.

- Era uma vez...

A mãe acabou de empilhar os pratos para levar para a cozinha e quedou-se a olhar, embevecida. Eles adoravam as histórias da avó, aquele jeitinho tão dela que lhes prendia a atenção durante horas a fio. Num mundo cada vez mais dominado pela tecnologia, pela falta de tempo, pela fome de imediato, a mãe sentiu-se grata. A avó sabia sempre como roubar uns minutos ao tempo. A avó tinha aquela sua forma mágica de estar e de viver e os netos bebiam toda e cada palavra que saísse da sua boca.

- Eram jovens e bonitos e tinham toda uma vida pela frente. Ou pelo menos era isso que eles pensavam... 
- Não viveram felizes para sempre, avó?
- Eram felizes, cada um à sua maneira, mas sonhavam todos os dias em como seria se pudessem ficar juntos.
- E porque é que não ficaram?

Falava-lhes de amor, de esperança, de dor e de sonhos. Falava-lhes de vida e de morte e eles faziam sempre muitas questões, queriam tudo muito bem explicado, não havia pergunta alguma para a qual não houvesse uma resposta. A avó nunca deixava nada por responder.

- O pai dela sempre achou que o rapaz não era um pretendente à altura da filha. Não tinha posses, entendem?
- O que são posses?
- Dinheiro, terras, casas... 
- Era pobre?
- Era pobre sim. Mas tinha nele todos os sonhos do mundo e ambição nunca lhe faltou. É claro que os seus alicerces foram duramente abalados quando o pai dela a prometeu a outro homem...

O avô remexeu-se na poltrona, o ressonar interrompido por breves segundos. A madeira crepitava, lambida pelo fogo, como se também quisesse fazer parte das histórias da avó, da voz forte e quente, quase hipnótica. As crianças escutavam, olhos muito abertos, e até o cão já se tinha juntado ao grupo, fingindo dormir. A avó apertou ao peito o mais novo, sentiu-lhe o cheiro doce, a vida que palpitava em cada pedacinho daquele corpo esguio.

- E depois, avó?
- Depois resolveram fugir. Planearam tudo às escondidas, envolto em segredo, com a cumplicidade da ama que a tinha criado desde o berço. Estava tudo combinado, o dia marcado, o local do encontro acertado. Mas a hora chegou e ele nunca apareceu.
- Porquê?
- Porque a ama os traiu. Contou o plano ao pai da rapariga e ele tratou logo de encomendar uma emboscada. Quando o rapaz estava a sair de casa tinha uma bala à espera.
- Uma bala, avó? Quer dizer que morreu? E o que lhe aconteceu a ela? 
- Quando soube quis morrer também. Depois, devagarinho, foi aprendendo a respirar novamente.

Mais do que saber, os netos sentiram que a história tinha chegado ao fim e que não havia já espaço para mais perguntas. Um por um foram cedendo ao cansaço, ao torpor morno que os embalava. O avô continuava a ressonar na poltrona. A mãe tinha terminado de lavar os pratos. O pai e os tios jogavam às cartas na mesa de jantar. O cão tinha desistido de fingir e dormia a sono solto, embrulhado na própria cauda. Naquela sala respirava-se serenidade e o amor era palpável. A avó pôs nova acha de lenha na lareira, espevitou o lume, voltou a acomodar o xaile nos ombros e pegou no livro que estava a ler.

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