Deixei-te



As pessoas nem sempre são o que precisamos que elas sejam. Os sentimentos não morrem da noite para o dia, por muito egoístas e errados. O tempo nunca se mede pelos nossos desejos, congela quando devia correr e escoa-se quando lhe pedimos uma trégua. As palavras gostam de se esconder quando as necessitamos ou de ferir em momentos de vulnerabilidade. A perfeição não existe e o amor morreu. Eu? Eu só queria desaparecer.

Gostava de poder dizer que retiro sempre qualquer coisa das experiências que vou tendo. Não posso, seria uma mentira redonda. Não retirei absolutamente nada deste último idiota que deixei pendurado, nem sequer arrependimento para contar a história. Se calhar com o tempo vamos ficando mais insensíveis ou na realidade todos temos um fundo mau, sempre pronto a emergir. Esgueirei-me ainda com as ruas adormecidas e a carteira dele no bolso - afinal sempre lhe retirei alguma coisa. Há pessoas tão ocas que nem para deixar um vazio servem. Tu? Contigo foi outra coisa.

A ti deixei-te para perceberes que não existo para te salvar. 

Tinha quinze anos quando saí pela última vez do sítio a que chamava casa. E não, não vou entrar em narrativas maçadoras de pais ausentes, mães alcoólicas e lares desfeitos. Ali a única coisa desfeita era eu e ninguém perdeu horas de sono ou muito tempo à minha procura. A rua tornou a menina frágil numa mulher sem escrúpulos e foram vários os sítios a que fui chamando casa. Tu foste um deles e de ti retirei a certeza de que não se deve despertar amor em alguém que não pretendemos amar. 

Como é difícil resistir à tentação de infligir dor àqueles que nos magoam primeiro. Tu sempre foste melhor que eu a não ceder à mesquinhez, mesmo depois de te largar como quem arremessa uma beata. 

A chuva vai descendo sobre as ruas nuas e eu desoriento-me por momentos. Procuro a ombreira de uma porta, sento-me nos degraus de pedra enquanto decido o que fazer. A todas as horas de cada dia espero ver-te atravessar uma estrada ou esbarrar contigo numa esquina ou sentir o teu cheiro no vento. Entro no autocarro, saio numa paragem ao acaso, percorro descalça três quarteirões até ao sítio onde tenho vivido. Depois de ti, não voltei a ter casa.    

Deixar-te foi o mais difícil que fiz na vida e ela não me tem perguntado muito aquilo que quero dela. Teve de ser assim de repelão, como quem arranca um penso, para nem dar por isso, para escapar à dor, mas a merda é que ainda hoje me dóis bem cá dentro, num sítio que nem sabia que tinha até te conhecer. 

Disseste-me tanta coisa sem precisares de me dizer nada. E a mágoa a escorrer das palavras que sei de cor, mesmo sem te ter dado oportunidade de as proferir. Estou cansado que te canses de mim ou que percas a paciência para viver ou dos dias em que tudo te parece errado. Descartas-me como se eu fosse merda e não a pessoa de quem dizes gostar. És egoísta, resume-se tudo a ti e ao teu egoísmo, se estás bem ou não e os outros para ti não passam de adereços. Fui apanhando muitos cobardes pelo caminho, mas nenhuma como tu. Mais do que o medo de me encarar, o medo que tens de enfrentar a vida. 

Mesmo depois de tudo, continuas sem ter a menor ideia do que sinto por ti. 

Atiro uma piza congelada para o microondas, a tua voz na minha cabeça a dizer-me que só como porcaria arranca-me um sorriso. Sempre adorei a forma como me chamavas idiota. Ou aquele jeito tão teu de me ouvires com muita atenção, como se eu estivesse a dizer a coisa mais importante do mundo. 

Ah, o arrependimento, companheiro de uma vida. 

Deixei-te mesmo sabendo como te foi difícil mostrares-me toda a tua vulnerabilidade, os teus medos e inseguranças. Deixei-te mesmo sabendo tudo aquilo com que estavas a lidar, o momento difícil que atravessavas. Deixei-te mesmo sabendo que não te queria deixar, mesmo sabendo que. Someone easy to leave. Even easier to forget. Só que, ao contrário do que julgas, nunca foste nem uma coisa nem outra. 

Se ao menos pudesse preservar a sensação dos teus braços em volta do meu corpo. 

Passo grande parte da madrugada acordada e levanto-me já o sol vai bem alto no céu. Tu odiavas desperdiçar assim os dias, a vida. E eu sempre a adiá-la. Desculpa-me por nunca ter visto o filme que me pediste para ver. Por nunca ter terminado aquele livro. Desculpa-me por ter andado meses a escrever-te um poema que nunca acabei. Por não ter comprado o presente que te queria dar. Pelas promessas que nunca fiz tenção de cumprir.   

O vazio que fica quando alguém se nos entranha no corpo, nos parte o coração e depois simplesmente vai embora. Deixei-te mesmo sabendo que a nossa história está longe de ter terminado. 

Tinhas tanto medo da palavra amor. De falar de sentimentos. Nunca me contaste a tua história. E aquela réstia de pânico nos teus olhos quando te dizia o quanto gostava de ti. Ainda gosto e parte de mim acha que vai gostar sempre, mas é apenas uma de muitas coisas que nunca irás saber.    

Porque mesmo naqueles dias em que tudo parece errado, tu continuas a ser o mais próximo da única coisa certa que fiz na vida. 

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