O escritor


Estava sentado ao fundo do café, abraçado pela névoa de nicotina que sempre o acompanhava. Debruçado sobre uma pilha de folhas, escrevia furiosamente, o rosto ossudo encoberto por uma massa de cabelo encaracolado que não se lembrava da última vez que vira água e sabão. A magreza de quem não comia uma refeição quente há dias, os dedos encardidos de tinta, o casaco coçado que em tempos fora camurça, os olhos encovados e inquietos - tudo nele gritava escritor ou morto de fome, era mais ou menos a mesma coisa. Dezenas de palavras a brotar, a transbordar no papel e no bolso nem um cêntimo. Há coisas das quais não se pode fugir e escrever é uma delas. Esmagou nova beata no cinzeiro, descolou o cabelo da testa e passeou o olhar crítico pelas últimas linhas. Havia ali qualquer coisa que não o deixava inteiramente satisfeito, a narrativa precisava de ajustes, as palavras certas eram outras e não aquelas, mas sabia também que o tempo se esgotara e teria de ficar assim mesmo, imperfeito, inacabado, insuficiente. 

O empregado do café ergueu os olhos para o recém-chegado. Aparecia todas as semanas, sempre à terça-feira, os fatos de bom corte muito bem engomados, no ar um odor a perfume e riqueza. Nunca se demorava mais que uns minutos. O escritor entregava-lhe uma pasta, ele metia-a debaixo do braço e saía, indiferente aos olhares que nele caíam. A troca de palavras de ambos era breve e discreta. O que poderiam ter em comum dois sujeitos tão diferentes era o que ninguém perguntava mas que todos ansiavam saber. No ócio do café as apostas multiplicavam-se. O escritor entrava mudo e saía calado, cada vez mais curvado de magreza e solidão. 

A porta rangeu para lhe dar passagem. O pivete a humidade e a canos acompanharam-no até ao colchão decrépito a que chamava cama. Despiu o casaco, arrumou-se como pôde e fechou os olhos, a cabeça latejava. As terças-feiras eram sempre penosas e o sótão pareceu-lhe ainda mais acanhado que de costume. O estômago rugiu em protesto, cansado de fingir que não estava vazio. Desencarquilhou o corpo e levou a mão ao bolso das calças. Procurou o maço de tabaco para enganar a fome, mas também ele se encontrava vazio.   

Acordou envolvido pela madrugada e pelo silêncio. Pegou na caneta e começou a escrever.

- Isto não está nem perto do razoável. Não quero saber o que se passa, só quero que o resolvas e rápido. O escritor baixou os olhos envergonhados. Era a mais crua das verdades.
- Não ando a acertar com as palavras.
- Tens uma semana para te entenderes com elas. 
Amachucou as folhas, ensinou-as a voar e saiu do café, onde o escritor ruminava o embaraço. Por um instante cessara o burburinho, à sua volta apenas silêncio e olhares postos nele. Corou como um adolescente apaixonado, entornou o cinzeiro, nervoso. Não estava acostumado a que reparassem que existia. Chegava, ele mesmo, a duvidar da própria existência. 

Fechou a porta do gabinete, criou distância do barulho constante que vinha da redação do jornal. Ainda se sentia levemente irritado depois do encontro com o escritor. As crónicas tinham vindo a ganhar cada vez mais popularidade, os leitores já não dispensavam aqueles pedaços de prosa e o escritor estava a deixá-lo ficar mal. Era o seu jornal que estava em causa, a sua reputação, o seu bom nome que arriscava ficar manchado pela leviandade com que aquele magricelas sem eira nem beira encarava as obrigações. Afinal de contas tinham um acordo e ele sempre o cumprira, gostasse ou não. Estaria a escrever mal de propósito? Para o levar a desistir das crónicas? Seria este o princípio de uma rebelião? Franziu o sobrolho, a irritação a crescer a pontos de o gabinete ser demasiado pequeno para a conter. Abriu a porta e enfrentou a redação, precisava de gritar com alguém.   

Pela primeira vez em muitos meses, o escritor não compareceu ao encontro. No café ninguém o via há já um par de dias. Reservado como era, não se lhe conhecia morada. Tinha desaparecido da mesma forma como sempre vivera, sem ninguém dar por ele.

- Tu pertences-me, compreendes? Tu e tudo o que escreves é meu, deves-me isso, está acordado há muito tempo. Como te atreves a faltar à tua palavra?
- Quero ser dono das minhas próprias palavras. Quero poder escrever livremente e ter o meu nome impresso. 
- Tu? Um zé ninguém? E quem iria querer ler um zé ninguém como tu?
- As mesmas pessoas que me leem todas as semanas, sem saber. As mesmas pessoas que apreciam as minhas crónicas mas julgam-nas tuas.
- Deves-me isso. Deves-me tudo!
- Como podes continuar esta farsa? Não tens remorsos? Fazer isto ao teu próprio irmão!
- Não voltes a repetir essa palavra. Não tenho nenhum irmão. 

Apeou-se do autocarro no preciso instante em que a chuva começou a cair. Afastou da testa o cabelo desgrenhado, ergueu para o ceú o rosto como se procurasse um sinal divino, algum tipo de resposta ou apenas um lugar para onde ir. O café barulhento ficara para trás. O diretor do jornal também. Tudo ficara para trás. Entalada no braço, a pasta recheada de papéis era o seu único haver. Agora sim, podia ser livre. Não conhecia ninguém e ninguém o conhecia. O desconhecimento pode ser também uma forma de liberdade. Caminhava lado a lado com a solidão e em todo o lado fervilhavam palavras, à sua volta, dentro dele, as suas palavras, devolvidas, renovadas, autênticas. Empurrou a porta de um café praticamente deserto, sentou-se ao balcão, o corpo a pedir descanso e um café. Depois, acendeu um cigarro e começou a escrever. 

Comentários