Fraude


O corpo e a hora matutina pediam mais uns minutos de cama. Mas o sol não tardaria a despontar, o sol que não espera por ninguém e era preciso acordar antes dele. Novo dia para enfrentar. Novo dia para se enfrentar. Quem ia ser hoje? Qualquer uma, tanto fazia, exceto ela mesma. Apenas tinha de se limitar a fingir, a fazer de conta. A vida ensinara-lhe a valiosa lição de que nada é mais importante que as aparências. Quando se domina essa arte, podemos ser quem quisermos.

Espalhados ao acaso pelas paredes do quartinho multiplicavam-se recortes com fotografias de gente que admirava e frases ditas inspiradoras. "Dress to impress", "Fake it till you make it", "Diamonds are girls best friends" e outras tiradas fúteis recordavam-na diariamente dos seus intentos. Um dia vou ser rica. Um dia vou ser alguém. Um dia vou ser mais que um embuste. 

Maquilhou-se cuidadosamente com as amostras que trazia das perfumarias. Examinou com atenção o guarda-fatos, arranjou o cabelo com esmero. Pegou na mala, uma imitação perfeita, e preparou-se para sair.

Batia a hora certa quando ela terminou de vestir a farda. Correu para trás do balcão, onde o colega que tinha feito noite bocejava copiosamente. Os primeiros hóspedes não tardariam a descer para o pequeno-almoço. Em poucos minutos o hotel encher-se-ia de gente a deambular, gente a chegar, gente a partir. Um dia, pensou. Um dia vou estar do outro lado do balcão. 

Despiu a farda, voltou a enfiar-se nas roupas que escolhera de manhã. Já estava atrasada, mas havia uma coisa que precisava de fazer primeiro. 

Chegou mesmo a tempo de o ver cruzar o portão da escola. Escondeu-se atrás de um automóvel, ficou a observá-lo à distância. Mochila às costas, a saltitar, as bochechas afogueadas da correria com os colegas. O olhar doce de menino, o cabelo igualzinho ao dela. À sua espera estava uma mulher, para os braços de quem correu, e que o encheu de beijos. A pontada do ciúme e da dor a atravessá-la, a lágrima que queria cair mas que ela não permitiu. Um dia venho buscar-te. Um dia venho buscar-te e nunca mais voltamos. 

Ele já a esperava, impaciente. Iam jantar num dos restaurantes com a melhor vista de toda a cidade, no topo de um edifício à beira-rio. Ele riquíssimo, ela cheia de fome. Ele, que não sonhava que por detrás daquelas roupas e do cabelo arranjado ela não tinha um tostão furado. Ela, que aguardava a oportunidade perfeita para dar o golpe e desaparecer. Jantaram em silêncio, olhos postos no rio. A cidade conspirava. 

Exausta, adormeceu ainda antes de a cabeça pousar na almofada e dormiu um sono sem sonhos. De manhã, o despertador não tocou. 

Gritos do chefe pelo atraso. Gritos do colega que fez horas no lugar dela. Gritos dos hóspedes porque não lhes tinham posto toalhas lavadas. Escondeu a cara nas mãos, fechou os olhos com força. Quando os voltou a abrir tinha-o ali, mesmo à sua frente, o choque estampado no rosto, a interrogação desenhada nos lábios. Com a cabeça às voltas, tentou pensar numa desculpa, algo convincente, qualquer coisa, mas que podia ela dizer, fardada, humilhada, atrás de um balcão? Mentirosa, foi tudo o que ele lhe disse antes de virar costas para não mais regressar. 

Quis que a terra a engolisse ali mesmo. À noite, em casa, chorou até lhe caírem os olhos. Enterrou a cabeça na almofada e deixou-se consumir pelo desgosto.    

Maquilhou-se, penteou-se, vestiu a melhor roupa que tinha no armário. Hora de se reerguer, de inventar uma nova personagem, uma outra vida. Passeou o olhos pelos recortes com frases inspiradoras espalhados pelas paredes, apertou ao peito uma fotografia do filho. Um dia, pensou. Um dia voltaremos a estar juntos. Saiu de casa ainda o sol não tinha nascido. Era tempo de recomeçar.  

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