Lembranças


Ficou parada a olhar para o telemóvel, uma ligeira mudança no semblante apenas. Pousou-o sobre a mesa, voltou a concentrar as atenções no ecrã do computador e falou, com aquele jeito muito seu, com a voz que tão bem lhe conheço.
- A minha mãe a lembrar-me que faz hoje anos que o meu pai morreu. Como se eu me pudesse esquecer.
Pausa.
- Não seria mau sinal se eu pudesse esquecer. Se eu pudesse não lembrar.
Silêncio.

Pensei em dizer-lhe que também o meu pai tinha morrido neste mesmo mês, não muitos dias antes. Pensei em dizer que também eu gostava de não o lembrar, de não o saber de todo. Pensei apenas e nada disse, porque de pouco iria adiantar. Quando se trata da morte sobram sempre as palavras. Quando falamos da morte acabamos sempre por tentar manter as coisas simples, apesar de nada haver que possa ser simples.
- Orquídeas eram as flores preferidas do meu pai. E são as minhas também, mesmo antes de saber que ele gostava.

Já ouvi esta história antes, mas deixo-a falar, deixo-a contar-ma outra vez, palavra a palavra. Faz-lhe bem falar, faz-lhe bem evocar recordações que também eu gostaria de ter. Não sei quais eram as flores favoritas do meu pai. Não sei sequer quais são as minhas. Há tanto que desconheço. Se ao menos fosse mais fácil através de mim mesma chegar a ele, conhecer um pedaço daquilo que ele foi. Se ao menos. Se ao menos eu começasse por saber quem sou, por me conhecer, se ao menos eu me visse. 

Nada há dizer sobre a morte. Acendemos um cigarro e fumamos vagarosamente, nem o demónio se atreve a perturbar este momento. Estou cada vez mais perto.

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