Madrugada


Entrei com pés de lã, como se receasse acordá-lo. Como se acordá-lo não fosse o objectivo da minha entrada no quarto. Sentei-me na beirinha da cama, demorei-me a olhar para ele, a certificar-me que era real e que por uns breves, brevíssimos momentos, ia ser meu. A paixão tem destas coisas. Quando o acordei, abraçou-me. Sabem aquela sensação de que o mundo faz sentido e que tudo está exactamente como deveria estar? Pois. Não encontro uma maneira melhor para descrever. 

Ela já me tinha dito que, quando chegasse, vinha dormir comigo. Não é que me faça muita diferença, se não fosse ela, seria outra qualquer. O que eu tinha mesmo era sono, mas se vêm assim ter connosco à cama, uma pessoa não se nega. 

Ele beija-me e eu fico sem ar. Literalmente. Eu sei que parecem aquelas descrições rebuscadas de romances pirosos, mas falta-me mesmo o ar e a porcaria do coração martela que nem um louco e todos esses sintomas horríveis de gente apaixonada. Para dizer a verdade, até me sinto estúpida por isso acontecer. E tenho medo que ele note, o que me faz sentir ainda mais estúpida.

Adoro mulheres, não é segredo para ninguém. Adoro sexo e quando mais obsceno, melhor. Vamos ver se valeu a pena ser acordado a estas horas da madrugada.  

Não se iludam. Sei bem que sou apenas mais uma na cama dele, por uma noite apenas, sou um programa, uma variante, uma coisa que lhe caiu assim do nada. Sei que ainda nem amanheceu e ele já não se lembra de mim. 

Hoje foi ela na minha cama, amanhã serei eu na cama de outra. Sem dramas, quando há muito drama o melhor que tenho a fazer é ignorar e pôr-me a milhas.

Ainda lhe deixei o bilhete na almofada. Para ser desprezada, nada mais que isso. Não obtive qualquer resposta. Já estou habituada, uma pessoa habitua-se a tudo, por muito que doa. E dói, dói mesmo. Entrei com pés de lã e saí da mesma forma, não com receio de o acordar, pois já há muito que se tinha levantado. Saí com pés de lã e foi, de facto, como se nunca lá estivesse estado.

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