Brilhante


Não é só a maneira como ela me provoca, as suas tiradas dúbias que, mais do que espicaçar, me divertem. Não é só todo aquele sarcasmo espalhado pelos olhos, pelo peito, pela boca. O seu jeito quase infantil de se afirmar, o pedacinho de arrogância tão próprio da juventude, tão próprio dela. Não é só a lascívia que transborda daquele corpo e me causa as maiores ânsias.

- És casado, não és?
- Sou.

Sentados frente a frente e as cervejas a morrerem no copo. Os olhos dela não me largam, mais do que perscrutadores, são incisivos. Não sei o que fazer com as mãos, puxo de um cigarro, coço a cabeça. Não me apetecia nada ter-lhe dito aquilo, o ser casado era subentendido e não algo posto em palavras, não me apetecia nada, merda, o que me apetecia mesmo era enterrar a cara naqueles... cabelos que ela tem, cheiram tão bem, toda ela é deliciosa. 

Pegou no jornal e pôs um ar muito compenetrado, uma atenção fingida e um cuidado exagerado a folheá-lo, deve estar a pensar que me incomoda com este falso desprezo. Eu estou é aliviado por não ter de responder a mais perguntas, a curiosidade dela parece que nunca mais acaba, insaciável é um termo que lhe assenta bem. Podia ficar a tarde toda a olhar para ela, mas acabo a cerveja e levanto-me. 

- Tenho de ir. Ainda ficas?

Inclino-me, vou para lhe dar um beijo, mas como era de esperar, ela esquiva-se, repele-me. Responde-me num tom seco, controlado, mas eu sei que devo estar a desenvolver nela uma grave síndrome de abandono. Aquela vez em que a deixei sozinha no quarto, despedi-me mesmo antes de fumar um cigarro e nem dessa vez ela deu o flanco, a sua expressão manteve-se inalterável. Decisões que tomo num impulso, não posso pensar muito, não posso ser emocional ou não saio nunca de perto dela. 

Não é só o medo de se expor aos outros, de admitir as suas fragilidades. As máscaras que usa, as personagens que vai criando. Não é só a loucura que é partilhar a sua cama. Não é só o facto de me fazer sentir vivo, como se tivesse vinte anos outra vez. Não é só uma coisa em particular e é tudo ao mesmo tempo. Gosto de complexidade. E gostava de me ver da maneira como ela me vê. Brilhante. Só para poder penetrar um pouco mais naquela mente distorcida. Deixá-la pensar que está tudo bem, que é dona deste jogo que ambos criámos. Continuar a enganar-me a mim mesmo, fingindo que tenho tudo controlado. 

Olho para ela uma vez mais antes de me afastar. Até a cerveja me caiu mal de repente. 

Comentários