Ceticismo


Sentei-me e ela começou de imediato a destapar-me a alma, as palavras a nascerem do fumo e a acertarem-me em cheio nos olhos. A janela escancarada, eu a rodar os anéis nos dedos sem saber o que fazer às mãos. Aquela mulher estava a abrir-me feridas sobre as quais não costumo falar. O animal acossado não estava a gostar de ser exposto como um bicho de feira. 

Bloco de gelo. Rochedo. Sem lágrimas. Incapaz de mostrar sentimentos. Implacável.

Falava e eu ouvia. Ouvia e acenava. Palavras escolhidas a dedo. Palavras que podiam ter sido usadas por mim para me descrever. Mexia-me na cadeira, virava e revirava as mãos. Não estava ali para mostrar as entranhas a uma desconhecida. Para dizer a verdade, não sabia sequer ao certo porque estava ali. A curiosidade matou o gato mas, afinal de contas, o gato tem sete vidas. Estava prestes a equacionar um plano de fuga quando começou a doer, mas a doer mesmo a sério, uma dor tão crua como só o verdadeiro sofrimento pode ser. 

Uma grande paixão. Loucura. Uma autêntica loucura por esse homem. 

A desilusão escrita no rosto que, até há minutos atrás, se debatia entre a dúvida e o desconforto. A voz dela distante e de repente é só a cara dele a sorrir para mim, o cheiro dele quando se debruça para me beijar, o roçar da pele dele na minha, o olhar dele, o seu corpo no meu, e de repente ainda dói mais e há muito mar por trás dos meus olhos. Mas o rochedo não chora quando há gente a ver. O rochedo tem vergonha do que sente e prefere arrancar o braço à dentada a mostrar de que são feitas as lágrimas. 

Totalmente diferentes. Tu és o sol, ela a lua. 

Entorpecida. Já não oiço nada do que me diz. A janela escancarada mostra-me que também o céu se encheu de tristeza e está negro e pinga e toda eu estou negra e apática, a maré cheia a transbordar. Ainda não é hora de deixar escoar a chuva de dentro de mim. 

És tão bonita. Tão forte. 

Tão danificada. E a falar, a rir, a respirar, a doer-me tudo. Sem chão. Entrei a medo, saio em bocados. É o abraço dele que apetece, mas é a voz dela que ainda ecoa e me persegue e me faz sentir um autêntico lixo. Quando estás mal a quem recorres? Quando precisas de um carinho a quem ligas? Não consigo respirar, tenho de fugir, tenho de desaparecer, tenho de me anular. Perco-me em ruas onde nunca antes tinha passado, acendo um cigarro e deixo a chuva escorrer-me pela cara. Afinal... afinal a cobarde sou eu. 

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