A princesa e a puta


Bater as ruas. Havia um tempo antes e um tempo depois. E no tempo antes, na vida que já não lhe pertencia, aquela expressão tinha algo de burlesco, apesar da crueza que trazia nas palavras. Só ali andava há meia dúzia de meses, o suficiente para perceber a dinâmica e para transformar o tempo de antes em tempo sem depois. Bater as ruas ou ser batido por elas. Aqui não há amizades e os favores pagam-se caro. É cada um por si a carregar os seus próprios demónios. Disputas e demarcações de território, quase caninas, viscerais. Sobrevivência em estado bruto. Descobriu que afinal, no tempo antes, nunca tinha sentido medo, nem frio ou fome, mas que nas ruas também não se podia dar a esses luxos. Aqui és invisível e os problemas começam quando deixas de o ser. E depois de perder a dignidade, nada mais há que sobre para lamentar. Se o meu pai soubesse, morria de vergonha.

Lançou uma olhadela rápida ao espelho e, uma vez mais, não gostou do que ele lhe devolvia. Baixou a cabeça, recuou de mansinho, como que a tentar passar despercebida, não fosse de repente surgir de novo aquela imagem grotesca para a atormentar. Nunca tinha sido bonita, sabia-o bem, e as gravidezes tinham deixado grandes estragos num corpo, já de si, disforme. Na escola, fora sempre o alvo preferido da crueldade dos outros miúdos. Agora chamam-lhe bullying. Na minha altura, pouca coisa há que não me tenham chamado. Sentou-se na beirinha da cama, os olhos aterraram distraidamente nas molduras alinhadas na cómoda, fotografias sorridentes do marido e das crianças. Os tesouros da minha vida. Sem eles, não seria realmente nada.      

O carro parou mesmo à frente dela, quase como se andasse à sua procura. Preto, mas imponente, discreto, mas caro. O homem sentado ao volante transpirava autoridade e uma ponta de impaciência. Quase não lhe deu tempo de fazer a avaliação mental em que já se tinha especializado e que podia ditar a diferença entre ser paga ou espancada. Talvez perto dos quarenta. Apresentação impecável, fato feito à medida. Habituado a dar ordens e a que lhe obedeçam sem ripostar. Casado. Os olhos dele fitaram-na a direito, gelados, sem nunca se desviarem e ela sentiu os cabelos na nuca a eriçarem-se um por um, qual animal que pressente perigo. Não devia ter entrado. No dia seguinte, o carro preto voltou. 

O marido. Quedou-se por momentos a sorrir para a foto, embevecida. Tinham-na tirado há um par de verões, num dia ventoso, o mar ali mesmo à beirinha, os cabelos a entrar pela boca, pelos olhos, pelo sorriso. Nunca nenhum homem olhou para mim como ele olha. Nunca nenhum homem olhou para mim, ponto. Na véspera tinha-lhe parecido um pouco ausente, distraído - ou será que já estava novamente a ver coisas que não existiam? Era um bom marido, um pai excecional, às vezes mal podia acreditar na sorte que tivera. Homens como ele não costumam estar com mulheres como eu. Há dias, ele oferecera-lhe um fato de treino. Seria alguma espécia de recado? As inseguranças voltaram.

Havia nele algo de inquietante. Tinha-se tornado visita assídua, o que não era muito comum por ali. Mais do que possuir-me, ele quer ter a minha posse. Tem fome de controlo absoluto e vê em mim o seu objeto preferido, que domina e descarta. Levava-a para um qualquer motel à beira da estrada e, durante o tempo que lhe apetecia, deixava nela todo o seu lado mais negro e obscuro. Pedia-lhe a exclusividade que ela não lhe podia dar. Anos de sufoco e repressão eram agora libertados, o monstro há tanto tempo adormecido estava mais inquieto que nunca. Este homem vai ser a minha perdição.   

As crianças dormiam a sono solto, o marido ia ficar a trabalhar até tarde e a televisão estava entediante. Afastou o chocolate com uma ponta de remorso a assolá-la. Qualquer dia estragas a balança. Depois vais pesar-te ao zoológico. Desviou as cortinas e espreitou para a noite, chovia copiosamente já há um par de horas, as ruas transformadas em rios caudalosos que corriam para qualquer parte incerta. Ele a trabalhar, pobrezinho. No mesmo instante, vindo não sabia bem de onde nem porquê, um arrepio gelado percorreu-lhe a espinha.

Caída numa valeta, o sangue a escorrer pela rua inundada de chuva e a vida a fugir-lhe. Vou morrer. Pai, vou morrer. Vou morrer aqui sozinha. Já não havia tempo antes nem tempo depois, apenas os minutos a escoarem-se, os minutos a transformarem-se em segundos, nos últimos segundos do tempo que lhe restava. Então é assim que acaba. Então tudo se resume a isto. Ele matou-me, pai. Vou morrer e nem me vou poder despedir de ti. As lágrimas misturavam-se com a chuva que lhe ensopava o corpo já moribundo e então apercebeu-se de que tinha mesmo muito medo, de que estava presa do maior pavor, queria pedir socorro e não podia, a respiração era já superficial, estava prestes a morrer ali sozinha, às mãos daquele homem que desde o primeiro instante lhe eriçara os cabelos na nuca. Está a ficar escuro e eu não gosto de escuro. Tenho frio. Por favor, não me deixes morrer. Eu não quero morrer. Pai, tenho tanto medo. O corpo franzino, em agonia, tentava ainda prender-se à vida que lhe fora roubada, exalava agora os últimos sopros. Já não sentia dor nem frio, nem tão pouco a chuva que ainda não tinha parado de cair. Um minuto apenas e tudo estaria terminado.

Entrou em casa, pousou o casaco ensopado, tirou os sapatos. As crianças já dormiam há muito, a mulher para ali estava como sempre. Sentou-se no sofá, pediu uma cerveja, acendeu um cigarro e recostou-se devagar. Estava tudo exatamente como devia estar. O mundo voltava a fazer sentido. 

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