Danificada


Começamos a ser danificados no momento em que nascemos. Sem nos apercebermos ou termos qualquer controlo do que de nós fazem, mesmo sendo aquilo com o qual teremos depois de lidar para o resto da vida. Ninguém nos prepara para o momento em que nos dizem que as pessoas podem estar em fotografias mesmo já estando mortas, quando ainda acreditamos que os senhores da televisão conseguem ver-nos lá em casa e falar connosco. Ninguém nos ensina que não é preciso ter vergonha de chorar nem de ter um nome estranho e um pai morto. Aos gritos sucede-se o silêncio. E toda a gente sabe que a noite é escura e cheia de terrores.

Sair mais cedo do trabalho, um batom novo, ler um livro. A simplicidade dos dias quase perfeitos. A solidão de quase todos os dias. Os pés a latejar dos saltos altos e uma piza congelada no forno. Quando a raiva abre espaço para a mágoa e volto a ser a menina tímida com vergonha de existir, com os demónios sempre por perto e estranguladas as palavras que ao longo dos anos não soube proferir. Nunca sei dizer as palavras certas no momento certo. Por vezes nem no momento errado ou apenas no momento errado, o que vai dar ao mesmo. 

Quantas vezes quis dizer o quanto gosto de ti. Talvez por nunca o ter feito tenha acabado assim, a televisão a preencher os silêncios, os óculos tortos de adormecer no sofá sem ninguém para me levar para a cama. 

Não sou boa a discutir nem a impor a minha vontade, mesmo quando tenho razão. Não sou boa a abordar temas dolorosos nem a falar do que sinto. Não sou boa praticamente em nada que não implique destruir-me e aos que me rodeiam. Não sei se já nasci assim ou se foi mácula que me deixaram. Ainda hoje choro pelo meu falecido cão, atropelado porque lhe abriram o portão do jardim e ele fugiu. Foi há mais de vinte anos e nunca consegui perdoar. Não sou boa a perdoar, sei que nunca o farei. 

Pesam-me os olhos e o corpo. Fui ao sótão desenterrar fantasmas e apareceu-me o teu. De um caixote bolorento saltaram as tuas cartas, de quando ainda havia tempo e sabedoria para as pessoas se escreverem. 

Sou a minha maior crítica. Gostava de ser simples, só para não me mortificar tanto com a minha falta de perfeição em tudo. Simples, apenas. Ser o tipo de rapariga  que fica feliz por se enfiar numas calças 34. Sentir o mundo com menos intensidade em mim para poder vivê-lo mais. Aceitar-me como sou e não tanto como deveria ser. Cobrir-me de clichês só para descobrir que talvez, e só mesmo talvez, eles existam porque fazem sentido.  

Quando era miúda havia um programa em que, antes dos intervalos, o apresentador mandava as pessoas beber um cafezinho e fazer um chichizinho. Nunca pude esquecer o que essas palavras, tão simples, brejeiras até, despertavam em mim. A ideia de uma família numerosa, barulhenta, caótica, a acotovelar-se no sofá, a falar uns por cima dos outros, a atropelar-se para ir fazer o tal chichizinho, a pedir ao mais novo para ir tirar os cafés e pelo caminho trazer também uns bombons. A gostarem demasiado uns dos outros, a serem uma fortaleza, impenetrável, sólida, tal e qual uma família deve ser e como sempre desejei construir contigo.

Começamos a ser danificados no momento em que nascemos. Terminaste de o fazer no último adeus, no virar de costas que ditou o nunca mais. Nunca mais haverá nada nem ninguém que me possa causar novos danos.

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