O escritor - parte 2


A maneira como as vejo. As pessoas, as coisas, o mundo. Estar aqui é estar vivo, é estar presente, a sentir, a assimilar, a ver. Tantos que passam pela vida sem realmente a verem. Sem verem nada. O velhote a arrastar a bengala e a idade escadas acima. No braço leva pendurado um saco de compras, no nariz equilibra uns óculos de aros dourados que o uso entortou. Vai devagar, como quem carrega às costas o peso do universo, um degrau após o outro, o peso das compras a balançar-lhe no braço, a bengala a amparar-lhe o peso do corpo. O grupo de adolescentes tagarelas, dos lábios brotam gargalhadas e juventude, com as suas mochilas a tiracolo e as calças bem justas. Não têm uma única preocupação na vida, mas ainda são demasiado jovens para o saber. Falam alto e depressa, umas por cima das outras, a atropelarem as palavras, como se o tempo se fosse esgotar a qualquer momento. A mulher que passeia o cão todas as manhãs, a cara tapada pelo livro que vai a ler, absorvida, embrenhada na leitura. Os cabelos soltos, compridos e encaracolados, caem-lhe pelas costas, a trela do animal enrolada numa mão, o livro na outra. 

Amachucou o maço vazio e atirou-o para o lixo. Espetou o nariz no ar, as nuvens andavam a prometer chuva, conseguia sentir-lhe o cheiro. Baixou-se para surripiar um jornal que ficara esquecido num banco do jardim. Era o jornal do irmão. Folheou-o depressa, à procura nem ele sabia de quê. As crónicas tinham desaparecido, da mesma forma que o seu autor. Pelos vistos o irmão ainda não tinha encontrado ninguém para o substituir. Regozijou-se com este pensamento. Podia imaginar a raiva do irmão, os gritos a saírem-lhe da boca e a espalharem-se no ar, a aterrarem nos fatos caros de corte sempre impecável.

Só elas me podem salvar. As palavras. Nada mais me resta no mundo. Mas ainda tenho muita coisa por dizer. 

Deambulava sem eira nem beira há já um par de meses. Ainda tentou encontrar abrigo naquela que durante muito tempo acreditara ser a sua musa mas, assim que a viu, percebeu com tristeza que tudo tem o tempo certo para acontecer e o deles já tinha passado. A vida não espera que estejamos prontos para a viver. Os dias sucediam-se às noites, os papéis iam aumentando na pasta que trazia sempre entalada no braço. Aceitava a existência sem a questionar, morna, ligeira. 

O dia em que deixar de escrever será o dia da minha morte. Quando um escritor não escreve acaba engolido pelas palavras. Amordaçado. 

A embriaguez que lhe provocava a liberdade foi abalada no dia em que tombou, desmaiado de fome e insensatez, à porta da dona Tina. Acolheu-o como ao filho que nunca teve. Desdobrou-se em mil cuidados para com aquele rapaz magricela de olhos encovados que nada mais tinha consigo a não ser uma caneta e um monte de papelada. Deu-lhe mais comida do que aquela que ele conseguia comer, roupas novas e uma cama limpa para dormir. Aquele rapaz era uma bênção que tinha aterrado à sua porta para pôr fim à solidão de toda uma vida. 

O sangue voltara a correr-lhe nas veias. Nada lhe faltava ao lado daquela mãe pequena e robusta que a vida lhe tinha emprestado. Mas o escritor deixara de conseguir escrever. 

Tenho de me ir embora. 

Sabia que ler aquele bilhete iria destroçar o coração da dona Tina, mas nunca fora capaz de enfrentar despedidas. Preparava-se para abandonar a única pessoa no mundo que se preocupava com ele, tudo em nome das palavras, sempre as palavras, a comandarem o rumo, a ditarem a desgraça, a revolverem-lhe as entranhas ao ponto de não mais conseguir suportar. Fechou a porta sem ruído, fundiu-se com a noite e andou até as pernas se recusarem a colaborar. Sentou-se numa paragem de autocarro, acendeu um cigarro e pegou na caneta. 

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