Acordo e sei que preciso de o fazer o mais depressa possível. Na verdade, não quero fazê-lo, fico mal-disposto só de pensar, mas tem mesmo de ser, não adianta esperar, adiar o inevitável, mas sinto-me fraquejar quando pego no telemóvel e lhe mando mensagem.
A conversa é breve. Pouco há que não tenha sido dito já. Perco a conta às vezes que terminámos, tantas e em tão diversas ocasiões. No refeitório da escola. No carro da irmã dele. A caminho de casa. Não posso dizer que não estivesse à espera, achei-o tão distante ontem que até já andava a mentalizar-me. Mas desta vez é diferente, desta vez a dor trespassa-me e é tão grande que precisa de se escoar e chego a ficar aliviada por ter sido por mensagem, porque nem pensar, não agora ou em tempo algum, nem pensar mesmo que vou permitir que ele me veja chorar.
Não fazes a menor ideia daquilo que preciso.
Já está. Já está. E agora? Preciso de a ver, mas não a quero encarar, não quero enfrentar aquele olhar de animal selvagem que não dá o flanco, mesmo quando foi ferido de morte. Passo por ela, mas não me vê, deixou cair ao chão o olhar e traz a angústia espalhada naquela cara linda que tanto adoro, o que me faz sentir um verdadeiro cretino. Ela matava-me se soubesse que testemunhei tamanha vulnerabilidade.
Engulo as lágrimas, limpo os olhos, encho-me de coragem e entro na escola. Ainda mal arrisquei dois passos e, como se de um filme se tratasse, lá está ele, parado à frente do pavilhão, de t-shirt branca para realçar o bronzeado que trouxe das férias, lindo como ele só. Corro para a casa-de-banho o mais depressa que as pernas me permitem, tenho quase a certeza de que não me viu, fecho-me num dos cubículos e encosto-me à parede a ouvir o matraquear descontrolado do meu coração. Espero pelo segundo toque para abandonar o esconderijo, nem quero saber se levo falta, simplesmente não consigo olhar para a cara dele neste momento.
Espreito pelo canto do olho, vejo-a entrar na sala, furtiva como um gato. Pela primeira vez não tenta estabelecer contacto visual, limita-se a sentar em silêncio e eu resisto à tentação de olhar para trás. Não ouço uma única palavra da aula, a minha mente não mora aqui, vagueia dispersa nem eu sei por onde. Passo o dia calado e este silêncio não é mais que o reflexo do vazio que se instalou.
As minhas amigas querem saber o que se passa, mas não me sinto capaz de falar, ainda está tudo muito fresco, muito doloroso, pelo que minto e digo apenas que estou com alergias. Penso no beijo que lhe dei, quando nos despedimos ontem à saída das aulas, o beijo que, julgava eu, se repetiria na manhã seguinte, mas afinal não, só que na altura eu não sabia, não tinha como saber, que aquele mísero beijo apressado seria o último que trocávamos.
Acordo e, pela primeira vez em muito tempo, não tenho uma mensagem dela. Ensaio um tímido 'oi' quando nos cruzamos nos corredores, mas ela finge que não existo. É justo. Sinto que perdi a única pessoa a quem podia contar tudo, mas mesmo tudo, sem nunca me julgar, do estilo se lhe dissesse que matei um homem, a única pergunta dela ia ser 'onde é que vamos esconder o corpo?'. Não deve existir muita gente que me conheça como ela conhece e ainda assim me queira por perto. Mesmo a minha irmã tem alturas em que nem me pode ver à frente. O que raio foste tu fazer, meu grande imbecil? Estou completamente perdido.
Ele passa por mim e eu baixo a cara e não, não é charminho, é dor pura, é dor em estado bruto, é eu saber que se mergulho os olhos nos dele estou perdida, afundo-me e não há maneira alguma de conseguir voltar à superfície. Só eu sei como está a ser difícil manter-me à tona. Sento-me na fila de trás, não quero que me veja, não quero que me olhe, só quero ser invisível. Mas, por outro lado, recebi um excelente no teste de matemática e ele é a única pessoa a quem me apetece contar.
Os meus níveis de ansiedade dispararam de uma forma ridícula e só me apetece mandar tudo ao ar. E claro que descarreguei primeiro nela. Claro que acabei com ela. Até porque ela volta sempre para mim. Não vai ser diferente desta vez, pois não? Só preciso de tempo e de lhe dar tempo também e tudo acabará por se compor.
Como é que ele foi capaz? Como? Logo agora, ele sabia que eu não estou bem, ele sabia, eu disse-lhe, eu partilhei, porra, expus-me, mostrei-me tal e qual como sou. Com as coisas como estão lá em casa e a morte do meu avô, fiquei completamente desamparada e ele sabia, mas não, egoísta como é, teve de se desembaraçar de mim, como sempre faz à primeira contrariedade. Sou a coisa mais descartável da vida dele, à menor ansiedade livra-se de mim e pronto. E eu, idiota como sou, volto sempre, pior, corro atrás dele, faço com que me aceite de volta, já cheguei mesmo a implorar que me beijasse, será possível ser mais patética? Será possível só agora me aperceber de como é tóxica a nossa relação? Como é que foi mesmo que ele disse? Gostar de ti traz mais coisas más que boas. Foi exatamente isto que ele me disse.
Ela sabe o filho da puta em que me transformo sempre que acabamos. Não é que queira, simplesmente não consigo evitar. Mas quando finalmente ergue o rosto para mim, a única coisa em que consigo pensar é em beijá-la. É fisicamente doloroso. Todas as fibras do meu corpo estão cientes da sua presença, sentada a meu lado, tão perto que lhe sinto o cheiro, mas ao mesmo tempo tão longe com esta distância que criei.
A sala está vazia, estão todos no intervalo ainda, e eu deslizo as mãos pelas coisas dele, a cadeira, a mesa, as canetas, o caderno onde tantas declarações de amor lhe escrevi. Aproveito os minutos de solidão para o folhear e é quando descubro com horror que riscou tudo, todas as palavras que lhe dediquei, o coração que desenhei e que o levou a troçar das minhas capacidades artísticas, tudo, desapareceu tudo, fico em choque, já nada resta de nós.
Aproveitar que vou ficar sozinho em casa. Se calhar até compro um jogo novo para me distrair. Chega sempre esta altura em que tudo transborda e a vontade que sinto é de me isolar. Preciso da minha solidão.
Íamos perder a virgindade esta semana. Depois de termos chegado com sucesso à segunda base - ou à terceira, nunca sei - estava já tudo combinado, os pais dele vão para fora, a irmã fica com o namorado, íamos ter a casa só para nós. Ao fim de tantos anos, ia finalmente acontecer e este grandessíssimo idiota lembra-se de me deixar precisamente agora, penso nisso e fico tão furiosa que só me apetece ir para a cama com o primeiro que me aparecer à frente e tirar fotos e fazer vídeos e enviar-lhe tudo pelo whatsapp.
Passo pela biblioteca e é impossível não me lembrar daquela tarde em que a beijei aqui à porta, chovia torrencialmente, e nós só tínhamos olhos um para o outro, olhos e mãos e boca. Não posso pensar nos lábios dela. Não posso pensar em nada dela. Aquele corpão da porra. Temos uma química gigante, uma cumplicidade inesgotável. Sei perfeitamente que ela nunca me vai ser indiferente, da mesma forma que sei que nunca vamos conseguir estar nem juntos nem separados.
Cinco horas e dezassete dias desde que acabámos e nem uma palavra. Nunca estivemos tanto tempo sem falar. Começo a pensar que afinal de contas talvez ela não volte para mim.
Quando conheces uma pessoa como a palma da tua mão, mas continuas a querer saber tudo sobre ela. Ele dizia-me que sou o seu livro favorito, que me queria ler sem pressas e mais um monte de tretas que já não significam nada. É que este livro, de tanto ser folheado, já tem cantos das páginas dobrados, algumas folhas foram arrancadas, está cheio de remendos e rasuras, foi revolvido e amachucado e largado como coisa sem préstimo.
Sinto no bolso o telefone a vibrar e quase o deixo cair.
É ele.
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