Ela
e eu, frente a frente. Ela e eu. A legítima e a outra. As duas, frente a
frente.
E
não tirava os olhos de mim, como se com o olhar pudesse reduzir-me a pó. Ou
talvez quisesse reter cada pormenor, o modo como o meu cabelo estava arranjado,
a roupa que vestia, a cor da minha bebida. Eu sorria. Sorria e fumava o meu
cigarro, sorria e bebia o Bacardi que desaparecia no copo a uma velocidade
vertiginosa. E ela ainda a olhar para mim. Sempre a olhar para mim. Até que,
recorrendo sabe-se lá a que coragem clandestina, me falou. Agarrou-me no braço
e começou a atirar palavras como se fossem pedras. Se pudesse, mordia-me.
Ela
e eu a olharmo-nos frente a frente. E uma vez mais sorri. Dois
beijos e segui caminho. Como se fosse a coisa mais banal do mundo encontrarmo-nos ali. Olá. És a? Sou. Eu sou a namorada do. Ah, olá. Estás boa? Baixei-me
para a cumprimentar. Nada mais do que isto. Nem uma hesitação, nem um passo em falso. O sorriso
escancarado e a vida a prosseguir naturalmente.
Não sei se a minha mente voava
ou se terá congelado naquele preciso instante. Não sei se o meu
olhar seria afável ou apenas umas quantas farpas de gelo.
Desconheço a reacção que ela esperava que eu tivesse. Não poderia ter tido
outra que não aquela. Tenho comigo a arte da dissimulação. E ela para
ali ficou, encostada à parede em todos os sentidos que a expressão possa ter.
A
noite da legítima e da outra. A noite em que a legítima foi para casa cedinho e
deixou a madrugada para a outra. Certamente confiou que a outra soubesse
exactamente o que fazer.
(«O Demónio nunca dorme», 2007)
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