Aprendi desde cedo a não perturbar. Falar pouco, ou de preferência nada, não ceder a queixumes, não me deixar levar pelas emoções. Aos quatro anos já não chorava em público, em trinta e quatro nunca soube expressar afeto. Depois conheci-te e fizeste de mim um clichê.
Fiquei estragada. Tornaste-te na minha pessoa de referência, com quem me sinto confortável a partilhar. Comecei a pedir demasiadas desculpas, vezes a mais. Desculpa se às vezes exagero. Desculpa se nem sempre sou simples. Desculpa se já não consigo que seja leve.
Ainda te lembras? Aquela noite de fevereiro, em que fazia frio, mas não chovia, chegaste ao mesmo tempo que eu, mas não comigo, tinha fome, mas não fui capaz de comer nada, fiz de conta apenas, fingi a noite toda na perfeição, há coisas que não sabes mas também não precisas de saber. Aquilo que era nada mais que um conceito abstrato a materializar-se como algo real, palpável, para me assombrar os dias e me manter acordada à noite. Passei o tempo a rir, mas chorei durante todo o caminho de regresso a casa, enquanto houver estrada para andar não estou perdida, doeu mas já passou, ainda respiro, ainda estou aqui, ainda te lembras?
Os dias são horas a fugir-nos. Tu e eu estamos a prazo nesta vida e cada dia que vivemos é pedido emprestado ao imprevisto.
"Não te esqueças que isto que temos é para ser leve. Não preciso de mais discussões. Não preciso que me acrescentem caos." Ouvi e doeu-me, mas calei. Depois de lhe ter escancarado a alma e de lhe ter mostrado quem sou, toda, por inteiro, depois de me ter posto a nu, sinto-me agora tão envergonhada. Tão pequena. Concordei sem concordar, aceitei sem aceitar. Acobardei-me. Voltei a ser a pessoa que não quer perturbar e algo em mim se rompeu, soube que tinha sido a última vez que me expunha daquela maneira e a partir de então nada mais seria que não leve.
E durante semanas nem uma palavra trocámos, fechei-me em casa, encerrada em mim, a cara colada às vidraças a ver as árvores a desnudarem-se, as folhas caíam e eu caía com elas, exposta, largada. A vontade de desistir chega de mansinho, apodera-se de mim, domina o espaço e de repente é como se não houvesse ar, falo de mim para comigo, digo que ainda não chegou a hora, obrigo-me a prosseguir, mas os meus pulmões simplesmente esqueceram-se de como se respira.
O nervosismo, a urgência e a loucura que tomam conta de nós quando nos tocamos depois de passarmos muito tempo afastados.
As palavras são armas na tua boca. Não quero ouvir, só quero fazer de conta que vai ficar tudo bem, que vamos ficar juntos para sempre, que somos nós contra o mundo, no nosso mundo, uma vida dentro de outra vida, tento tapar os ouvidos, mas o ruído continua, continua sempre, nada há que o possa deter. O carro vai acelerando, tudo fica para trás, o corpo que carrego também ele ficou para trás, já não é meu, nunca foi teu, despi-me de mim para poder ser para ti e agora nada mais resta, somos uma história por contar.
Abro a porta e saio do carro, ensaio dois passos, a tua voz nas minhas costas, chamas-me pelo nome, já não te oiço, já se esgotou o tempo e as palavras, continuo a andar, o vento desarruma-me os cabelos e esvazia os pensamentos. Estou tão perto, estou quase lá, aperto o metal frio entre os dedos, já consigo sentir a água na pele, olho para baixo, estendo os braços e é como se pudesse tocar-lhe, está longe mas tão perto, só preciso de me libertar, só preciso de deixar de pensar, de me importar, o meu corpo já não é mais um fardo que carrego. Estou aqui, sou livre, mergulho no vazio, já não sinto o peso, vejo-me a cair, a pairar, à deriva, cada vez mais depressa e de repente é só a escuridão a engolir-me e eu já sem mim, sem rasto de ti, eu a apagar aquilo que foi nosso, eu que nunca antes me senti tão leve.
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