Sítio feliz

A madrugada avança preguiçosamente na casa adormecida. No ar um cheiro a calor, a urze e a expectativa. Os quartos respiram silêncio, rasgado de tempos a tempos por um ligeiro ressonar. Pais, irmãos, cão, dorme tudo a sono solto. Pés descalços fazem-se ouvir no soalho de madeira, que range, cansado. Só ela se mantém desperta, vigilante. Aproxima-se da janela, cola o nariz às vidraças, perscruta o exterior, uma e outra vez. Não deteta o menor movimento, nenhum restolhar nas árvores, nada, poderá ele não vir? Os minutos recusam-se a avançar, a ansiedade toma conta do espaço. Só quando os faróis de um carro iluminam a estrada de terra é que ela se permite, por fim, encher de ar os pulmões. 

Afunda-se no banco e não sabe bem para onde olhar, o que fazer com as mãos, com as pernas, com o corpo todo. Ele não dá tempo para que o silêncio se instale. Ela contempla fascinada a facilidade com que as palavras lhe saem da boca. 
- Queria pedir-te desculpa pelos últimos dias, mas tenho estado no fundo do poço. Na minha cabeça é só ruído e escuridão. E tu não tens culpa nem tens de lidar com os meus demónios, por isso preferi afastar-me. Além disso, tomei uma decisão.
A pergunta sai-lhe num fio de voz enrouquecido e mal se atreve a respirar.
- Que decisão? 
Sente-o hesitar, pesar as palavras. Quando responde, não olha para ela. 
- Vou-me embora.

Não é ali o lugar nem o momento para lágrimas. Engole o desgosto, pede emprestada a coragem que sente faltar-lhe, faz um acordo com deus, com o diabo, com qualquer um. 
- E nós?   
- Não existe nós. Nunca pôde existir. Sabes bem o que a tua família pensa de mim.
- E o que eu penso de ti? Não importa?
- Por me importar tanto é que tenho de ir embora. Consegues perceber?

Se fosse há uns anos teria ficado calada. Assentiria em silêncio, petrificada, incapaz de se expor. Mas ele tinha-a desbloqueado, para o bem e para o mal, e agora era impossível travar a torrente de palavras. 
- Não, não consigo. Tu emprestas significado às coisas. Talvez eu seja mesmo alguém além daquela que tento ser. E tu deixas-me ser simplesmente quem sou. A tua gravidade é demasiado forte e vai sempre puxar-me para ti. Sou eu, somos nós, como podes não falar comigo? Como podes afastar-te assim? Tu és o meu sítio feliz! Como é que eu não sou o teu?

Vê-lhe a tristeza conformada no olhar e é então que o sente ceder. Afinal de contas não era nem nunca seria a falta de amor que os separava. E nas traseiras daquela carrinha a céu aberto foram, naquela noite quente de julho, tudo o que gostavam de poder prolongar pela vida. 

Deixam-se ficar abraçados, muito quietos, a existir em conjunto. A ser simplesmente o sítio feliz um do outro.
- Conseguiste calar todo o ruído na minha cabeça.
- Talvez fosse mais fácil se fosses menos giro. Menos interessante. Se o sentimento fosse menor. A química menos incendiária. Se a interação fosse menos intensa. Se a conversa fosse menos fluida. Talvez se não sonhasse contigo todas as noites. Se a vontade fosse inexistente. Se a saudade não mordesse. Se a tristeza não queimasse. Talvez fosse mais fácil se tu e eu fossemos simples. Se pensássemos menos. Se pudéssemos ser livres. Talvez se não tivesses despertado no meu interior tanta coisa que nem sabia possuir. Se não fosse como perder uma parte de mim que nunca mais vou recuperar. Talvez fosse mais fácil. É que eu ainda te pertenço, hoje e sempre, mesmo que um dia já não me queiras. 
- Esse dia nunca vai chegar. 

O sol começa a despontar, esgotando assim o tempo. Se pudesse simplesmente enroscar o corpo no dele e assim permanecer. Mas sempre soube que ele não a poderia salvar dela mesma. Apesar de não faltar amor, por si só não era suficiente quando não vinha de mão dada com a coragem. 

- Tu fizeste-me amar-te. Tu fizeste-me acreditar que era possível. Vieste com as tuas conversinhas, a olhar para mim como se eu fosse a coisa mais interessante à face da Terra, a querer saber tudo o que penso, tudo o que tenho para dizer, tudo o que sou e eu era feliz, sabes? Eu era feliz. Mas tu fizeste-me isto e agora vais-te embora e eu não quero, não posso, não consigo respirar sem ti. Dizes que não podemos estar juntos, mas não sei como vamos existir separados. 

Olha-o uma última vez, numa despedida muda. Fica a ver o carro afastar-se, até não ser mais que um pontinho escuro na estrada empoeirada. Entra em casa em bicos de pés, descobre com alívio que ainda não está ninguém a pé. Refugia-se no quarto, afunda o corpo entre os lençóis, o cheiro dele em cada centímetro de pele a contaminar tudo em redor. Fecha os olhos com força. Agora, sim, pode finalmente chorar.

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