Ajeitou o corpo franzino no banco, a sensação de mover-se sem no entanto controlar o movimento. A cara colada ao vidro da janela, o mundo lá fora a ficar para trás. Olhava sem ver, os campos, as estradas, o frio que encolhia as pessoas, a noite que pousava nos telhados das casas. Tudo ficava para trás. O comboio, assim como a vida, seguia sempre, implacável, sem se deter, sem hipótese de regresso.
A dolorosa consciência de que não dá mais, de que fomos para lá do limite, não temos mais caminho por onde ir, esgotaste em ti toda a possibilidade de mim, de nós, atingiu-me em cheio, esmurrou-me, atirou-me ao chão e lá fiquei, ferida, esmagada na minha solidão, sem me conseguir erguer. Porque enquanto há esperança há vida e a esperança morreu hoje decapitada.
Afastou do rosto o matagal de cabelo atrás do qual escondia um rosto banal, tão banal que facilmente passava despercebido na multidão, a pele queimada do sol e os olhos castanhos que escorriam tristeza, daquele tipo de tristeza que envenena por dentro, corrói, entranha-se. Nada mais havia que pudesse ser dito, mas tanto tinha ficado por dizer, a boca a explodir de palavras, a entrega e o muito que ficou por entregar, o corpo de ressaca a implorar por migalhas.
Despedaçada, gosto da palavra, não tanto da sensação, mas não tenho como evitá-la. As conversas que eram antes o sustento dos meus dias terminam agora sempre em lágrimas. Dói-me em lugares que não consigo apontar e começo a questionar se será mesmo verdade que o tempo cura todas as feridas.
O comboio parou com um estremecimento. Descolou-se do vidro, deixou sair do corpo o torpor e reprimiu um bocejo. Lá fora a escuridão era quase total, apenas rasgada pela luz trémula da estação. Escolhera aquele sítio como poderia ter sido outro qualquer. Acarinhava a esperança de que a distância fosse companheira do esquecimento. Apeou-se, de mão dada com a solidão.
Beijar ficou para sempre arruinado. Nunca mais aqueles beijos que me remexem as entranhas, mais do que beijos são uma invasão, uma fusão de corpos, paixão, vontade e desejo em estado bruto. Se não for para ser assim, nunca mais quero beijar ninguém na vida.
Deambulou ao acaso, até o corpo lhe pedir abrigo. Uma porta encimada por uma tabuleta de madeira deu-lhe entrada numa pensão que à primeira vista lhe pareceu tão vazia como ela. Rendeu-se ao calor que emanava de uma lareira ao fundo da saleta, esforçou-se por deixar em branco a mente que fervilhava.
Deixo de ser a mulher mais desejada do planeta para me tornar na maior merda que jamais existiu. Nunca me senti tão humilhada na vida. Nunca me rebaixei a este ponto. Está a comportar-se como um filho da puta e descubro que também não sou melhor, porque só me apetece ser cruel, dizer-lhe as maiores barbaridades, pôr o dedo na ferida e fazer doer, mas por um qualquer desígnio não o faço, não digo nada, talvez seja amor, pelo que me limito a chorar muito e em surdina. Pergunto-me em que momento resolveu fazer de conta que deixou de se importar comigo.
O quarto era pequeno, mas asseado. A mobília reduzia-se ao essencial, o chão rangia-lhe sob os pés a cada passo. Sentou-se na cama e pôs-se a afagar distraidamente a almofada, sem saber o que fazer para apressar o tempo. Sempre que fechava os olhos só o via a ele. Ele, que lhe tinha dito que estavam juntos e que juntos iam ultrapassar tudo, mas que algures pelo caminho parecia ter-se esquecido.
Aquilo em que toca, destrói. Pior só mesmo um tornado. Ou, quiçá, nem isso.
Duas pancadas secas na porta, duas pancadas apenas foram o suficiente para saber que era ele que estava do outro lado. Ficaram parados a olhar um para o outro, nervosos pela distância que se impunha, ansiosos para a encurtarem. Ela deu-lhe passagem e encostou-se à parede, num convite mudo, ele chegou-se de mansinho e o tempo parou naquele instante que precedeu o beijo. Nenhum dos dois sabia já se se tratava de um reencontro ou de uma despedida.
E para ali ficamos misturados um no outro, a olhar-nos em completa adoração e a desejar que tudo pudesse ser sempre assim, simples. Ou apenas que eu e ele o fossemos. Porque pessoas como nós não se apaixonam por gente simples.
Amei!
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