Rir, somente




Este tempo todo, estive sempre aqui. Sem mexer um músculo, sem respirar. Quem me viu, quem me vê? Estive aqui e nem o transeunte reparou nos farrapos que a minha mente libertou. Preciso de fazer furos no crânio e assim aliviar a pressão, assim deixar escorrer um pouco do que me tem afogado o cérebro. O meu corpo cai a uma velocidade assustadora e eu não o consigo acompanhar. Já vou ter contigo, digo-lhe. Preciso de conseguir transtornar uma alma, acrescento. Não me basta conquistá-la, não me basta que me escute e me siga, preciso de semear algum caos, preciso que me respirem.

- Gostava de ser mais como tu. De rir, assim com esse teu jeito. De rir, somente – diz-me e fecha os olhos, num gesto cansado. Faço sinal ao empregado para que traga mais duas bebidas e estudo a expressão daquele rosto, as rugas pequeninas à volta da boca, os traços muito vincados, a velhice prematura em cada poro. 

Rir nem sempre quer dizer alguma coisa. Nem sempre quer dizer felicidade ou sarcasmo, tão pouco. Rir é, por vezes, apenas uma outra maneira, uma mesma maneira, de chorar.

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