Escuridão


 Como uma espécie de censura. O problema é que podem censurar-se palavras, mas não sentimentos. E era disso que ele tinha medo. E se depois de tudo ela não voltasse a ser a mesma? Às vezes é mesmo melhor não saber, mas ela era teimosa, teimosa como só ela sabia ser. De fazer um gajo perder a cabeça.

Pensava ter descoberto a luz, mas passados tantos anos, a escuridão ainda está comigo. Acho que sempre esteve. Está-me no sangue, como ela me disse no outro dia. Envolve-me toda e não me deixa sair. São as trevas que me consomem ou eu que as consumo, já não sei bem. Não sei nada, afinal. Só me dá vontade de me pôr a abanar para a frente e para trás, uma autista, é mesmo assim que me sinto.

E o hábito insuportável que ela tem de desaparecer durante horas, dias, semanas. Como quem é engolida pela terra, ninguém lhe põe a vista em cima até ela querer. Até aparecer, como se nada fosse, sempre como se nada fosse, com aquele sorriso enigmático, o olhar de quem descobriu um mistério indecifrável que não partilha com ninguém.

Há coisas que ficam melhor por dizer. Mas se não sei lidar com a verdade e não quero viver com a mentira. E gera-se o conflito, a eterna luta entre a luz e as trevas. Já são demasiados demónios em mim, o convívio saudável entre eles há muito que acabou. Resta-me a certeza, aquela certeza absoluta e ancestral - o segredo está seguro comigo. 

A escuridão que ela carrega, mais do que visível, é palpável. Em cada palavra que não diz, na maneira como se esconde dela mesma. É algo que só a ela pertence e no qual nunca poderei tomar parte. Nunca ninguém conseguiu permanecer no seu mundo por muito tempo.

Desaparecer, duas, três semanas no máximo. Deve ser o suficiente. Tenho medo, medo de estar a confundir, a misturar tudo, a transformar retratos de paisagens em estátuas de mármore e gelo. Quero esvair-me pela veia de alguém e coagular noutro sítio - qualquer sítio - desde que a escuridão não me possa alcançar. Preciso de me acorrentar, trancar portas e janelas, decepar as loucas fantasias que me possuem, masturbar segredos e calar aquilo que gostaria de poder gritar. Desaparecer - duas ou três semanas, no máximo - e descobrir se evito ou acelero ou o colapso.

 




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