Alguém tem de ceder


Gosto quando ponho toda a gente a rir. É algo que faço com facilidade. Pouco me importa se sou o bobo da corte, gosto mesmo é do som das gargalhadas, de rir e de fazer rir. Mas não gosto de falar de mim. Falar é demasiado penoso. Sobretudo quando o fazemos apenas para não estar calados. O silêncio não me assusta. Tu, sim, assustas-me. 

Fizeste troça dos meus demónios sem sequer te dares ao trabalho de os decifrar. Fazes troça de mim muitas vezes. Porque sou desajeitada ou insegura, porque sou um iceberg, porque falo de mais ou falo de menos. Porque existo e incomodo-te. A ti, que és sempre tão convicto e seguro, tão dono da razão, sempre tão cheio de ti mesmo.  

Um arrepio bem fundo nas minhas entranhas e a lembrança de ti no meu pescoço, todo tu dentes e lábios e pele, tão intenso. Para logo de seguida me virares as costas, desdenhares a minha companhia, para logo de seguida trazeres à tona uma espécie de gémeo maléfico, que se congratula em magoar-me. 

Apetecia-me tanto tocar-te. Não me atrevo. Como se temesse ser punida, como se tivesse de esperar por uma licença para o fazer. Agarro-te o rosto com força, com dureza, o teu olhar é aço. O meu interior encolhe-se, receando uma tempestade, mas a minha vontade é firme. Alguém tem de ceder.

Digo que desisto, mas não sei se estou preparada para o fazer. Digo muitas coisas, tomo resoluções, vejo e revejo mentalmente os meus motivos, desconstruo tudo e volto ao início. Não prestas, não prestas, as palavras ecoam-me nos ouvidos e, por instantes, quase acredito. 

Chove e estou sozinha. Momento de indecisão, acabo por dizer-te que venhas ao meu encontro. A resposta não se faz esperar e é categórica. Não. Toda uma recusa, mais uma e tudo estará terminado. Os meus demónios não suportam mais humilhação. 

Fico à chuva. Se alguém tem de ceder, não voltarei a ser eu.

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