Natal


Pouco a pouco, vou voltando a gostar. Devagar, a medo, como quem ensaia os primeiros passos hesitantes. Abro a porta da cozinha, espreito o quintal e sou invadida pelo cheiro da terra molhada. Sobe-me pelo nariz e chega-me aos olhos. É o cheiro da minha aldeia, digo-te, e tenho que disfarçar e mudar de assunto rapidamente, porque a vontade que tenho é de chorar. Chorar como só alguém que sabe o que são saudades de morte pode chorar. 

E é o cheiro da terra, da chuva, do frio e são as luzes a piscar, tantas cores e piscam sem parar com aquela musiquinha irritante e é o presépio em cima da lareira e como eu gostava de brincar com as figuras, agora já nem burro nem vaca, quem é que se haveria de lembrar de tirar o burro e a vaca? Quem é que vai aquecer o menino nas palhinhas? A minha avó punha sempre algodão na caminha dele. Quem é que o vai fazer agora? O menino não pode perder o burro e a vaca, não depois de ter perdido o seu algodão.  

Quantos anos, já? Parece que foi há quatro minutos atrás e parece que foi há uma eternidade. É tempo de uma reconciliação, é isso que ela iria querer. É tempo de voltar a gostar. 

Os doces na mesa e nós de roda do fogo. Eu a escapulir-me e a enfrentar a noite para fumar um ou outro cigarro, à socapa. Parte da minha juventude e a minha infância ali interinha, ao pé daquele lume. O ar gelado e os cães a ensarilharem-se nas nossas pernas. Um beijo de despedida, um aconchego, a promessa de um regresso dentro de poucos meses. E depois? E depois, avó? Eu não podia sequer conceber tal ideia, mas tu já sabias que era a última vez que me vias na vida. 

Sei que nunca vou gostar da mesma maneira, mas já não o detesto. Já não desejo que passe rápido ou que não passe sequer por mim. Fecho a porta da cozinha. Devagar, a medo, vou deixando escoar tudo aquilo que faz doer e vou voltando a gostar. Vou para a sala onde me espera uma árvore para enfeitar e um presépio para fazer. Já é mais que tempo de devolver o algodão à caminha do menino.    

Comentários