Esquecimento


Era ainda inverno e fazia frio. O carro era velho, não tinha aquecimento e uma das portas empancava. Não se via muita gente nas ruas, devia ser perto da meia noite, apenas um ou outro automóvel que se dissolvia na bruma. Seguia de vidro entreaberto para bater a cinza do cigarro, o cinzeiro, tal como muitas outras coisas, não funcionava bem. A estrada toda pela frente, o vento a gelar-me a mão e toda uma vontade de chegar.

Abriu-me a porta, envergando um robe azul, e ficou parado a olhar-me, quase como se não me esperasse. Abracei-o, mais por não saber o que dizer do que por saudade, tínhamos estado juntos apenas há um par de horas. E agora estava ali à porta, à porta da casa de férias, como gostava de lhe chamar. Uma casa fria e quase desprovida de móveis e de conforto. Entrámos para a sala, dois sofás a um canto e uma televisão a que ninguém prestava importância. A mesa de jantar desaparecera e, ao pé da janela, amontoava-se todo o tipo de tralhas. Sentei-me ao lado dele e a sua tristeza era quase palpável. Não soube o que dizer, nunca sei. 

Fui atrás dele para o quarto, não suportava estar sozinha nem por um minuto que fosse. Estou a fazer uma cama para nós, disse-me. Pus-me então a ajudá-lo, entalar os lençóis, compor as almofadas, puxar o edredão, naquela cama que muito em breve estaria novamente desfeita. 

Até que ponto é que o ser humano consegue ler a alma do outro? Ali, naquela noite fria, o que ambos procurávamos era um aconchego, uma forma de alívio, qualquer tipo de anulação ou de amnésia. E o sexo foi a nossa melhor forma de expressão, entrelaçaram-se mãos, pernas, bocas, braços e, por momentos, tudo deixou de existir. A língua ágil a percorrer o corpo e os palavrões a escapar por entre os lábios, a conferirem contornos quase pornográficos. Depois, o silêncio e, com ele, a lembrança. 

Passei-lhe um braço em redor do corpo ainda quente. A cabeça às voltas e a sensação de ter envelhecido muitos anos de repente. 

Aqueles momentos em que dói tanto que apetece arrancar a pele. Pensamos que não vamos aguentar mais, mas aguentamos sempre. Sobrevivemos sempre. Já não procuro alívio. O que eu procuro é o esquecimento. Ou a indiferença. Sei lá o que é que procuro.

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