Abandono


Tem a mania que me conhece. Que me consegue ler. Acha que sabe tudo, só porque usa aquelas palavras complicadas e fala de coisas difíceis de entender. Pensa que me afecta em tudo o que faz. Agora são os problemas de abandono. Porque tive uma mãe que não o quis ser e um pai que nunca tinha tempo. Porque o tenho a ele, que não sabe nem quer ficar.

Despejo-lhe frases umas atrás das outras e ele deixa-me a falar sozinha. Da última vez quase perdi a compostura, a vontade de lhe explodir na cara em mil perguntas ou de lhe atirar com a cerveja à cabeça, tinha o jornal nas mãos mas acho que não li uma única linha. São cada vez menos as palavras que me dispensa, são cada vez mais as que lhe quero dizer. Podíamos discutir até à eternidade que o assunto não se esgotava.

- Tenho de me ir embora, estou atrasado, não posso ficar nem mais um minuto.

E de repente está vestido, o tempo já se esgotou e eu ainda nem movi um músculo sequer. Acende um cigarro e dirige-me um ligeiro aceno antes de desandar porta fora e diluir-se nas sombras. Pensa que está a trazer à tona todos os meus traumas de infância e tem um certo prazer secreto nisso. Apanhou o meu jeito corrosivo e regozija-se por ver o quanto me esforço por estar ao seu nível. Com traumas ou sem traumas.

- O teu sarcasmo é comovente. E toda essa desesperança, quase me consegues enternecer.

O que ele quer é uma transfusão de juventude, quer sentir a adrenalina no sangue e a minha boca no seu corpo. Diz que a minha superioridade física me torna cruel, mas que não lhe faço frente em nada. O intelectual magnético. Deambula pela casa como um sonâmbulo, vai arrumando ideias e remoendo em voz baixa. Não olha para mim. O que temos roça os contornos da perversão.

Tenho a boca inundada de palavras mas, quando dou conta, ele já se foi embora.

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