Arrependimento


Os joelhos. A esta hora eram sempre os joelhos que lhe doíam. Custava-lhe sentar na cadeira, custava-lhe procurar os óculos, virar as páginas do jornal. Malditos joelhos. Era cedo e não sabia o que fazer com o tempo. Nem valia a pena ligar a televisão. Era velho, sim, mas não tão velho que conseguisse aturar a estupidez da programação da tarde. Podia ir até ao café, jogar uma cartada com a brigada do reumático, discutir o jogo de domingo passado, matar minutos, horas inteiras. Podia simplesmente ficar ali, a remoer o almoço e memórias antigas. Lembrou-se dela, tal como se tinha lembrado na véspera e em todos os dias daquela semana.

Vinte e cinco anos certinhos. Desde a última vez que lhe falou, que lhe agarrou na mão, que a teve diante de si a enchê-lo com aquela presença tão sua. Fazia calor, era verão decerto, lembrava-se de estar a suar em bica e não devia ser só dos nervos que sentia de cada vez que estava com ela. Não era homem de decorar datas e muito menos roupas usadas nesta ou naquela ocasião, mas quase podia jurar que ela trazia as pernas à mostra - um vestido, uns calções, talvez? Durante meses aquelas pernas não lhe saíram da cabeça. E agora pareciam estar de volta para o atazanar.

Já não tinha idade para estas tolices. Olhou-se ao espelho e tentou lembrar-se de como era antes do cabelo grisalho, antes da rugas espalhadas pela cara, antes dos comprimidos que engolia, mesmo sabendo que de pouco ou nada serviam. Ainda conservava o mesmo olhar de outrora, mas era só isso que lhe restava. O olhar tímido, de quem guarda um segredo que tem vergonha de contar. O olhar de menino de que ela tanto gostava. Malditos joelhos que não paravam de doer.

Que estaria a fazer agora? Sabia que tinha casado, com um jornalistazeco qualquer, mas não sabia se tinha filhos, netos, que rumo dera à vida. Também não sabia o que o levava a recordá-la, quinto dia consecutivo. Vontade de recuar no tempo, seria? Com o mar mesmo atrás de si, um cigarro numa mão e a outra pousada naquelas pernas nuas. Nessa altura, pensava que ia ser sempre assim. Não podia sequer sonhar que era a última vez que estavam juntos na vida. Se calhar, se soubesse, tinha feito as coisas de maneira diferente. Se calhar não a tinha deixado ali, o mar todo por trás, a areia, o sol na pele. Ah, não passava de um pobre velho a viver de ilusões. 

Escolhas. Resumia-se tudo a isso. Na altura, foram as que lhe pareceram mais acertadas. A ela pouco ou nada interessava o que era certo e errado. Podia ter casado com ela. Devia ter casado com ela. Sabia que não voltaria a haver outra que o olhasse da maneira como ela o fazia. Nunca mais aqueles olhos, nunca mais o mar, nunca mais as pernas nuas. Há coisas que é melhor deixar enterradas. Levantou-se devagarinho, foi até à janela numa saudação muda ao sol. Até os joelhos tinham deixado de lhe doer.

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