Pena


- Para que é que me vieste arrancar ao conforto do previsível? Também tu escreves para desinquietar? Já me abanaste a mente, desassossegaste o corpo, puseste-me o sistema num turbilhão. E agora dizes nada mais ter para dar? Eu «não me alimento de quases, não vivo de metades». Não desisto, ou consigo o que quero ou mudo de ideias. 

Calo-me, envergonhada com esta súbita honestidade. Engulo rapidamente o que resta da bebida que, com muita pena minha, nada mais é que uma preguiçosa gota no fundo do copo. Faço sinal ao empregado, está distraído com uma ruiva de calções curtos e gosto duvidoso. A minha garganta está seca, puxo de um cigarro e é claro que pioro a situação, por pouco não desato a tossir.

- Toma, bebe. 

Apetece-me recusar, nem o consigo olhar a direito, mas a minha boca parece papel de embrulho. Agarro no copo tentando nada transparecer, num esforço para ser graciosa, para não entornar a bebida, maldizendo o empregado que não acaba com o engate de uma vez por todas. De onde é que me saiu aquela torrente verbal? Se calhar vou é para casa. Se calhar. Em vez disso, novo vómito de palavras.

- Tu fazes-me querer mais. Mais de mim, mais dos outros, mais de tudo o que a vida tem para dar. Fazes-me querer comer peixe cru, dançar nua na areia, deambular por Singapura e escrever histórias com finais perfeitos. E eu só tenho esta vida para te querer e não sei como não o fazer.

Desta vez, encaro-o bem de frente. Desta vez é ele que procura desviar o olhar, não devia estar à espera. Talvez já se tenha arrependido de ter vindo, mas eu nem lhe dou tempo de reagir e ponho-me a ronronar, toca-me. Ando obcecada pela palavra e só há uma maneira de me libertar desta obsessão. Abre muito os olhos, o assombro colado à cara. Toca-me, insisto, fazendo-o remexer-se na cadeira sem saber o que dizer, toca-me, suplico e agarro na sua mão, faço-a percorrer o meu cabelo, a minha pele, a minha boca.

- Tenho muita pena...
- Eu só quero saber como é ter um génio em mim. Saber se as tuas mãos têm o mesmo efeito das tuas palavras. E não te vou pedir desculpa por isso.

Retira a mão da minha, numa recusa silenciosa. Não sem antes me absorver toda, não sem antes se atirar de cabeça, não sem antes deixar de resistir, pois quando se consegue resistir é porque não era desejo.

- Tenho mesmo muita pena...

Também eu poderia dizer que sim. Também eu poderia dizer muita coisa, mas a verdade é que não tenho pena nenhuma. Só que o meu copo esteja ainda vazio. Não, do fundo do coração não o lamento.

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