Existir


Desceu as escadas para a rua. Estava a anoitecer e soprava um vento quente que lhe amoleceu os passos e a fez demorar-se a entrar no carro. Talvez fosse o calor, talvez fosse por não ter a certeza do rumo a tomar. Estava exausta. Tinha sido uma semana horrível. Horrível ao ponto de querer enterrar a cabeça na almofada e gritar. Horrível ao ponto de não querer ir para casa por medo à solidão. Se eu simplesmente desaparecesse? Se era para desaparecer, só podia ser num sítio. 

Decidiu assim, num impulso, ao mesmo tempo que rodava a chave na ignição e acendia um cigarro. Decidiu com a leveza de quem não tem ninguém à espera em parte alguma. A estrada toda pela frente, a maresia a entrar-lhe pelo nariz. Tinha tantas perguntas, tão poucas respostas. Os artistas são almas atormentadas. Só alguém igualmente atormentado a podia entender.

Ele abriu-lhe a porta sem proferir uma única palavra, o olhar carregado de interrogações. Continuou sem nada dizer enquanto a observava a enroscar-se no pequeno sofá laranja junto à janela, a enterrar a cara nas mãos, os dedos a amarinharem pelos cabelos. Pegou no pincel, a tela a encher-se de cor, formas a surgirem como por encanto, tinta espalhada por todo o lado. Ela fumava em grandes baforadas. Se disser alguma coisa agora, o que quer que seja, tenho a certeza que vou estragar tudo. Estou tão contente que, de todos os sítios, ela tenha escolhido este. Até que, por fim, ela quebrou o silêncio. 

- E se desistir for o oposto de existir? E se, de cada vez que penso em desistir, estou a pensar em deixar de existir? Estarei a anular-me a mim mesma?

Questionava, num turbilhão de palavras que não pediam resposta. Ele continuou a pintar, as mãos cheias de uma tarde de verão, a tela repleta de cor, formas a surgirem, tinta por todo o lado. Ele pintava e ela falava.

- Eu disse-te que tinha demónios. Só não te disse que o conflito que se aqui se desenrola é comigo mesma. Com a vida. Com o que faço com ela e com o que a deixo fazer comigo. E não tenho ideia absolutamente nenhuma como se eliminam estes demónios. E se eu não encontrar todas as respostas? Tu disseste que me ajudavas. Tu disseste para te procurar. Eu procurei-te para tu me encontrares. Não me deixes deixar de existir.

Pousou o pincel com cuidado, voltou-se devagar para encarar aqueles olhos que pediam promessas. E, naquele instante, sentiu-se capaz de lhe prometer o mundo. A tinta a misturar-se na pele, tantas cores naquele corpo que era agora a sua tela.

Não é isto que ele precisa e eu não tenho nada mais para oferecer. A noite já tinha caído por completo. Se ao menos ela pudesse ficar mais um bocadinho. Desceu as escadas para a rua, demorou-se um instante apenas. O vento continuava a soprar quente.

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