Perspectiva

 
Tinha mais de noventa anos e uma imensa vontade de viver. Filhos, netos, bisnetos e até um trisneto que era a alegria dos seus dias. Gostava de passar as tardes sentada perto da janela, a sentir-se parte das ruas, do café de esquina apinhado de gente, dos automóveis que passavam apressados. Pousava as mãos engelhadas no regaço e punha-se a cismar. Quando era moça nova, tinha muito medo de envelhecer. De ficar esquecida a um canto. Na altura pensava em como iria desejar que o tempo voltasse para trás, em como iria querer ter aproveitado melhor a meninice.
 
Uma vez, lembra-se bem, esteve largas horas a debater com uma amiga, tentando descortinar se em algum momento da vida se está preparado para morrer. Deviam ter ambas pouco mais de vinte anos, mas sempre conheceu uma existência atormentada pelo sentido da vida. Sempre teve dificuldades em lidar com os mistérios da morte. Defendeu que não, que mesmo após uma vida volvida, que mesmo depois de ter desempenhado o seu papel no mundo, nunca se chega a um ponto em que se deseja partir. Hoje, sabe que estava certa. Hoje, mais de noventa anos e um medo enorme de morrer.
 
Tinha ficado viúva ia já para duas décadas. Um casamento feliz e quatro filhos, mas o seu grande amor, esse, bem o sabia, deixara-o escapar por entre os dedos por não lhe ter sabido dizer o quanto o queria. Ah, os erros da juventude. Ainda hoje se lembra dos tremores no estômago que lhe provocavam aqueles olhos verdes. Nunca nenhum homem a tinha feito sentir-se assim e não voltou a haver outro - há coisas que só acontecem uma vez. Despediram-se para sempre numa tarde chuvosa e nunca mais soube nada dele, provavelmente já devia ter morrido, sem nunca saber o quanto ela o queria. Mas nem os mais de noventa anos lhe puderam apagar da lembrança aqueles olhos verdes, aqueles tremores no estômago.
 
Ligou a televisão, mais pelo barulho que por vontade de assistir a algum programa. Farejou o ar que entrava pela janela, cheirava a chuva, apesar de ainda não haver uma nuvem no céu. Desde miúda que o olfacto levava a melhor sobre os outros sentidos, resistindo estoicamente à idade e aos muitos cigarros fumados. Afinal o tabaco nem sempre mata, pensou, e quase se riu. O gato acordou e veio a bambolear-se até às suas pernas, roçou-se, molengão, arqueando o dorso amarelo. Estava na hora de alimentar o bichano, ergueu o corpo devagarinho, a um ritmo cadenciado. Eram apenas mais de noventa anos, ansiosos pelos que ainda estariam por vir. 

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