Dependência


- Devo gostar mesmo dele. Dá-me vontade de todas aquelas coisas pirosas e lamechas que antes me faziam vomitar. 
- E agora?
- Agora tenho de deixá-lo, porque isto está a destruir-me. 

E contou-lhe. Contou-lhe tudo, os dias a sucederem-se, as semanas a transformarem-se em meses, a tristeza que teimava em não passar, as lágrimas que escorriam nos momentos quentes do duche, nas longas filas de trânsito, nos minutos antes de entrar no café com um grande sorriso, trancada na casa de banho do escritório sem conseguir mexer um músculo, deitada na cama vazia a ensopar a almofada, lágrimas ao acordar pela manhã, lágrimas até quase deixar de conseguir respirar. 

- Acho que tenho chorado mais nos últimos meses do que em toda a minha vida.
- E ele, gosta de ti?
- Gosta, como última opção. 

Estavam só as duas na mesa, sentadas frente a frente, as chávenas do café já vazias, o cinzeiro grávido de beatas. Naquele fim de tarde a prometer chuva, não lhe escondeu nada. O desespero que se libertava da sua pele assustava. Disse-lhe que já nem se reconhecia e não sabia em que tipo de pessoa se estava a transformar. Que não acreditava em depressões, mas que tinha medo do que poderia estar a acontecer-lhe. 

- Dói tanto que chego a pensar que se amputasse um membro custava menos. 

Olhava a amiga com tristeza e nada dizia. Nunca a tinha visto assim por nada nem ninguém. Sabia que sobravam as palavras em momentos de grande dor. E que dor podia ser maior que ficar para sempre a pensar em tudo o que podiam ter sido? Com tanto que tinha ficado por dizer, tanto por fazer. É sempre tentador escolher o mais fácil, a comodidade do hábito, a segurança da rotina. 

- Li há dias, numa dessas revistas femininas duvidosas, uma descrição que me assenta como uma luva. Descobri que tenho uma dependência. E não, não é só de café e de nicotina. Sinto-me tão ridícula. E se isto não passa? E se é mesmo a sério? E se desta vez eu aprendi realmente o que é gostar de alguém? Estou ainda mais danificada do que já era. Tenho tanto medo.

A chuva caía já, escorria pelos vidros embaciados e gordurosos. Uma por uma, as mesas tinham ficado vazias. Apenas as duas sentadas frente a frente e as chávenas que continuavam tristemente por levantar, as beatas espalhadas, o desespero que queimava.

- Vivo de migalhas. Vivo na sombra daquilo que um dia fui. Hoje, sou a puta dele. Amanhã, não serei nada.

O olhar entornado no vazio, a boca a querer ensaiar um sorriso. 

- Devo gostar mesmo dele...

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