Cobardia


Pôs a chave na fechadura, quase a medo. Era a terceira vez esta semana que chegava a casa fora de horas. Entrou em silêncio. Não podia voltar a usar a mesma desculpa, estava a tornar-se recorrente. Qual seria o limite aceitável de mentiras que se pode contar em apenas uma semana? Pousou as chaves na entrada e seguiu para a cozinha, onde o jantar já estava servido e principiava a arrefecer. 
- Outra vez a trabalhar até tarde?
- Pois...
Desviou o olhar. Teria sido convincente? Comeram à pressa, quase sem trocar palavra, ele a ver o Real Madrid, ela com a cara enfiada no prato. Outra vez a trabalhar até tarde? Pois.

Não era possível terem passado já três horas, parecia que tinham acabado de chegar. Observou-a enquanto ela vestia rapidamente a blusa e, naquele instante, soube que gostava dela. Não fazia ideia do que iria fazer com esse sentimento, mas não lhe restava outra opção a não ser conservá-lo. Era forte demais e falava mais alto que todas as vozes na sua cabeça que lhe diziam que aquilo não teria um final feliz. Mas, naquele instante em que soube que gostava dela, ele sentia-se feliz. E, só por isso, mandou o tempo à fava, arrancou-lhe a roupa que ela já tinha vestido e entregou-se a essa felicidade.

Todos os meses se organizava um jantar em que reuniam o velho grupo. Costumava ser um serão agradável, que se prolongava noite dentro entre copos e piadas, mas hoje ela dava por si distraída com frequência, e foi encontrar-se perdida em cogitações que giravam em torno dele e a deixavam quente por dentro. Desde que se tinham conhecido, o mundo dera não uma, mas várias cambalhotas. Era errado, sim, mas de uma forma tão deliciosa, tão eletrizante, tão... Alguém lhe tocou no braço, pondo fim ao devaneio. Era o marido, a perguntar se ela queria sobremesa.

Tinha-lhe dito que estava apaixonado e ela mantivera-se silenciosa, de cabeça baixa. Que lhe poderia responder? Que também ela estava apaixonada, sim, mas que se acomodara ao fim de dez anos de casamento? Até tinha vergonha de tamanha cobardia.

Sabia que ela não ia sair da sua zona de conforto. Era um porto seguro já muito antigo e ali a antiguidade era um autêntico posto e falava mais alto que todo e qualquer sentimento. A química que os unia era tão forte que sabia - tinha absoluta certeza - que nenhum deles, jamais, voltaria a sentir nada semelhante com alguém. Abdicar de algo assim pelo conforto de uma rotina, não, isso era coisa que ele simplesmente não conseguia entender.

Já andava há semanas a remoer e tinha chegado o dia. Não passava de hoje, estava absolutamente decidida. Ia contar-lhe. Ia contar-lhe, tendo plena noção do desgosto que ia causar-lhe, mas ciente também do alívio que a sinceridade traria. Já era altura de assumir as consequências dos seus atos. Já era altura de parar de viver amordaçada ao passado.
- Tenho uma coisa para te dizer.
Ele levantou os olhos do telemóvel e abriu um sorriso.
- Nem vais acreditar no que me aconteceu hoje.
E principiou, animado, a desfiar uma torrente de palavras, mas ela já só superficialmente o ouvia. A coragem de há pouco tinha-se esvaído, a determinação outrora tão firme fraquejava e algo dentro dela morreu. Deixou-se cair no sofá, nem se apercebendo de que o marido tinha terminado a sua empolgante história.
- E então? O que tinhas para me dizer?
O olhar vazio, a mordaça do passado, o desgosto iminente. A cobardia a sair-lhe por todos os poros.
- A tua mãe ligou. Sábado vamos almoçar  lá a casa. 

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