Triângulo


Era uma vez uma tartaruga. Há pouco tempo naquele pedaço de mar, ainda não tinha feito amigos. A sua natureza silenciosa impunha-se, acima dos bramidos do oceano e do incessante vaivém dos seus inúmeros moradores. Tivera a ocasião de conhecer a família de enguias, que morava mesmo a seu lado, e um par de ostras palradoras, que encontrava frequentemente nos seus passeios solitários. O novo lar apresentava-se ainda desconhecido e sedutoramente misterioso, mas a tartaruga tinha medo de se aventurar para lá da sua zona de conforto. Não tinha corrido muito bem da última vez que o fizera, do outro lado do mar, onde antes morava.

Foi num desses passeios que viu o golfinho. Tinha um ar ligeiro e travesso, como só os golfinhos sabem ser, e captou de imediato a atenção da tartaruga. Ela também não lhe foi indiferente e, no dia seguinte, lá estava ele a cirandar de novo por aquelas paragens, o olhar atrevido, a conversa pronta. De poucas palavras ao início, logo os dias da tartaruga passaram a ser quase inteiramente preenchidos com a companhia do golfinho. Juntos, inventaram novas formas de alegria e elevaram o conceito de amizade até um nível que ambos desconheciam. A tartaruga era o animal mais feliz daquelas profundezas, feliz como nunca antes. Cada escolha sua, cada erro, cada decisão, a tinham levado até ali, a um novo pedaço de mar, até ao seu amigo.

Não demorou até as criaturas marinhas começarem a especular. Não havia muitos mexericos para comentar naquela zona, nada de excitante com que entreter o ócio, pelo que aqueles dois se tornaram no tema quente do momento. As ostras andavam embevecidas e diziam a quem as quisesse ouvir que eles formavam o par mais bonito do oceano e que nunca tinham visto o golfinho assim. Assim como, insistiam os seus interlocutores, mas as ostras limitavam-se a bater as pestanas e a suspirar, assim. Eram os ai-jesus ali do sítio e, secretamente, os animais receavam o terrível momento em que esta amizade chegasse aos ouvidos do polvo gigante.

O polvo era uma bizarra criatura, imensa e disforme, que ninguém apreciava e toda a gente temia. Possuía uns longos tentáculos pegajosos, que tudo alcançavam, e sob os quais há muito tempo mantinha aprisionado o golfinho. Ninguém percebia o domínio que o molusco exercia sobre ele, mas também ninguém ousava falar abertamente do assunto. Cochichava-se por entre algas e atrás de corais e a tensão crescia à medida que as marés passavam. Aquele pedaço de mar era demasiado pequeno para os três. Aproximava-se a hora de a tartaruga voltar a partir. Todos os animais sabiam que o golfinho fazia sempre tudo o que o polvo queria.

As luas sucediam-se sem o golfinho aparecer e a tristeza da tartaruga era infinita. Passou dias esquecidos em lágrimas, enfiada na carapaça, e todos sabem como são raras e valiosas as lágrimas de uma tartaruga. Quis fugir, deixar tudo para trás uma vez mais, descobrir um outro pedaço de mar que a acolhesse, longe de todos, do golfinho, do polvo gigante, das ostras palradoras que de repente tinham ficado silenciosas, longe da saudade, longe de si mesma. Doía demais. Mas ficou. Cada dia avançava um pouco mais para fora da sua carapaça, cada dia lhe trazia uma nova oportunidade de viver. Não voltou a ver o golfinho, que estaria certamente enredado nos viscosos tentáculos do polvo. E não, eles também não viveram felizes para sempre. Mas essa... essa já é outra história.

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