Ele


Voltou a afastar os olhos do monitor. Era a terceira vez na semana que, perdido e achado, dava por si a pensar nela. Não que não o tivesse feito muitas, incontáveis vezes ao longo dos últimos anos. Não que alguma vez pudesse não pensar, não se lembrar, não se censurar até. Mas, naquele preciso instante, a imagem dela surgia-lhe tão nítida que quase sentiu que podia tocar-lhe. Arrepiou-se com a lembrança da pele dela e praguejou logo de seguida. Levantou-se para ir buscar café, rosnando entredentes. Não a via há mais de dez anos, porque é que não lhe saía agora da cabeça? Só havia uma coisa acertada a fazer e resolveu não perder tempo. 

Sorriam os dois para a fotografia. Ela de gorro de pai natal na cabeça, ele com uma camisola de cavas cinzenta, felicidade em estado bruto a inundar-lhes o rosto. Ela rodeava-lhe o pescoço com um braço e apertava-o de encontro a si, como se nada mais no mundo pudesse importar naquele momento. Traziam consigo o tipo de cumplicidade que só o sexo e a paixão sabem criar. Olhou-se ao espelho. Onde estava o homem da foto? Fazia tempo que não o via.

E se ela tivesse mudado de número? Não havia maneira de saber sem ligar mas e se ela não quisesse falar com ele? Fez uma careta a si próprio. Estava a comportar-se como uma adolescente recheada de hormonas. Mesmo que ela lhe desligasse o telefone na cara, não havia problema, ele saberia viver com isso. E algo lhe dizia que ela não o faria. Não era, nunca tinha sido uma mulher comum. Aliás, era tudo menos comum. Encheu-se de coragem, marcou o número e estava a chamar, um toque, dois, três... antes era ele que nunca lhe atendia as chamadas, ela devia estar agora a vingar-se disso... quatro toques, cinco, atendeu ao sexto. Atendeu! Sentia-se um miúdo outra vez.

Mal cabia em si de contente com a perspetiva de a rever e não podia estar mais nervoso. Ela reconhecera-lhe a voz às primeiras palavras e, por momentos, nenhum dos dois falou, num silêncio pleno de significado. Só então se apercebeu das saudades que tinha de a ouvir, de como era bom o som do riso dela em resposta às parvoíces que arranjava para lhe dizer.

Simplesmente impossível conseguir esquecer a última vez que a viu, a dor escrita em cada traço do rosto dela, aqueles olhos tão lindos cheios de lágrimas e a esforçarem-se tanto para não transbordar. Sentiu-se o mais indigno dos cretinos. Mais do que a ela, estava a desiludir-se a ele próprio.
- Espero que não te afogues em arrependimento por seres um acomodado. Espero que não acordes um dia e os 'ses' te consumam. Espero que nunca tenhas de te sentir como me sinto agora. E espero, mais do que qualquer outra coisa, que não voltes a despertar amor em alguém que não tencionas amar.

Borrifou-se cuidadosamente com o perfume que ela sempre elogiava. Tinha o costume de se encostar ao seu corpo e esfregar-se toda pelo pescoço dele, pela cara, pela barba... Quase se arrepiou com a lembrança. Será que ainda gostava de o ver de camisa preta? Não estava assim tão diferente e o que mudara tinha sido para melhor. Costumava dizer-lhe, meio a sério meio a brincar, que seria como o vinho do Porto. Agora, ela ia ter a oportunidade de o comprovar, como tantas vezes tinham falado. Voltou a aprumar-se em frente ao espelho. Ia vê-la! Estava excitado como um garoto pequeno. O rapaz na fotografia de há dez anos piscou-lhe o olho. Afinal estás aí. Afinal sempre voltaste.

- Não gostavas de mim o suficiente para ficar.
- Se calhar gostava e nunca to disse.
- Se calhar não passas de um cobarde.
Calou-se. Ela tirara-lhe as palavras da boca. E o ar dos pulmões, por momentos, assim que a viu assomar ao fundo da rua. Já não se lembrava do que aquela mulher conseguia despertar nele, mas bastaram dois segundos para o cérebro se inquietar, arrastando consigo outras partes do corpo.
- Divorciada. Um filho.
- Casado. Dois.
Tinham-se encontrado um ao outro no emaranhado que é o mundo para depois se voltarem a perder. Como podia semelhante coisa ter acontecido? E, de repente, foi como se o tempo entre eles nunca tivesse passado.

O cheiro dela. A pele dela. O gosto dela. Sempre se tinham entendido bem na cama. Sempre se tinham entendido bem em todo o lado. Ela tinha razão, afinal. Juntos, podiam mesmo ter dominado o mundo.
- Deixar-te foi a coisa mais difícil e mais estúpida que fiz na vida. 

Acordou sobressaltado. Desligou o despertador, esfregou os olhos, tomou consciência de si. Saltou da cama de um pulo. Estava ali. Era ele, inteiro, jovem outra vez, era real. Estava mesmo ali. Afinal não tinha 40 anos, um casamento confortável e um passado cheio de arrependimentos. Afinal sobrava-lhe tempo para arriscar. Para viver. Afinal ainda tinha uma vida inteira pela frente. Agarrou no telemóvel. Tinha a habitual mensagem dela de bom dia. O mundo voltava a fazer sentido. 

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