À tua espera


Como é que ela podia ter-lhe feito aquilo? Como é que ela era capaz? Como é que podia permitir que outras mãos tocassem naquele corpo que era tão dele que se fechasse os olhos ainda era capaz de lhe desenhar os contornos, aquele corpo que tanto o tinha arrepiado, como é que outro alguém podia estar a beijar a mesma boca que lhe sorrira vezes sem conta, que lhe dissera as mais ternas palavras, a boca que ele queria chamar de sua pelo tempo de uma vida, ou mais até se possível... Como é que ela era capaz? Guiava como um louco pelo meio dos carros, cego de raiva, a odiá-la, a querer por tudo odiá-la, bater-lhe, dar-lhe uma surra valente, até se cansar, até não poder mais e cair para o lado de exaustão, e depois beijá-la até a boca lhe arder, abraçá-la com a força e não voltar a largá-la nunca mais. Nunca digas nunca, tinha-a avisado. Ela disse e não cumpriu. Como podia ter-lhe feito aquilo?

Como é que consegui aparentar tanta serenidade é algo que nunca vou saber. Por momentos, o mundo girou, parou, sei lá, nada mais havia sem ser ele, ali mesmo à minha frente, ao alcance dos olhos, das mãos, enfim, era ele. Estive quase para não entrar, para ficar no carro à espera, faltou-me a coragem, as pernas tremeram. o estômago embrulhou-se. Ele ali à minha frente. Com um ar abatido, uma tristeza no olhar como poucas vezes lhe vi, uma solidão enorme a desprender-se do corpo. Abraça-me com a sofreguidão com que um náufrago se agarra a uma rocha em alto mar e, por instantes, o calor daqueles braços foi como um regresso a casa. Diz-me que tem saudades minhas e é quando reparo que no dedo não traz a habitual e detestável aliança.

Entrou em casa aos tropeções e foi recebido pelo cão com o habitual estardalhaço, mas desta vez até lhe soube bem. Ajoelhou-se no chão e enterrou a cara no pêlo do companheiro de quatro patas. Ele merecia o que estava a sentir. Tinha plena consciência de como a danificara, de como não tinha sido honesto nem com os próprios sentimentos. Mas não era assim que tinha imaginado o reencontro de ambos. Egoistamente, sentia-a como propriedade sua, ela era dele, ponto, e que ninguém ousasse intrometer-se. E agora aparecia ali com outro? Quem era ele, afinal? Como se atrevia esse otário a achar que podia tocar-lhe, que sabia sequer como tocar-lhe? Acendeu um cigarro, o dedo queimado a latejar, a raiva a dar lugar à mágoa, o whisky a espreitar na prateleira. Ia mesmo pôr-se a chorar como um miúdo pequeno? Foda-se, esta mulher continua a ser a minha perdição. 

Não tem aliança. Não tem aliança! Pode ter-se esquecido. Não, ele nunca a tirava. Será que a perdeu? E o que é que isso me interessa? Zero. Há muito tempo que deixei de me importar, a duras penas, mas deixei mesmo. Diz-me que tem saudades minhas, o desespero a acentuar cada palavra, os olhos que não largam os meus, as mãos semi enfiadas nos bolsos das calças, a pose que tão bem lhe conheço, o cabelo a tombar-lhe para a testa, quase me sinto tentada a afagá-lo, mas recomponho-me a tempo de o ouvir perguntar-me o que faço ali. Quando digo que quero apresentar-lhe o meu namorado, vejo-o ficar sem ar e sei, com absoluta certeza, que mais facilmente ele colocaria um carvão a arder na língua do que apertava a mão ao homem que me anda a comer.

A garrafa quase vazia e a cabeça ainda cheia daquela presença tão inquietante. Na memória teimavam em surgir imagens e mais imagens, pequenos detalhes que durante anos compuseram a sua felicidade. Sem se dar conta, tinha estado este tempo todo à espera dela. Como é que ela podia ter-lhe feito aquilo? O cão tinha adormecido à lareira e ele estava também prestes a esvaziar a mente quando o som do telemóvel o arrastou de volta para o mundo dos vivos.

Se te pedisse, voltavas a esperar por mim?

Comentários

  1. Passei frente ao texto, num passo de acaso que me fez demorar-me, sem contar o tempo.
    Gosto da pena e da fragrância da tinta. Vou descobrir-lhe a tonalidade noutro passo plural.
    Até já.

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