Ela


Começou tudo com um pacote de bolachas. Um gesto tão simples - ela tinha fome, ele foi gentil - foi o suficiente para saber que nunca seriam só e apenas bolachas. Tinham dado início a algo profundo e irremediável, selado com palavras que ela nunca mais esqueceu.
- Obrigada pelas bolachas.
- Deixa lá, depois pagas um jantar.
A resposta provocou-lhe um sorriso daqueles que vêm direitinhos do estômago e são prenúncio de borboletas e problemas. Enfiou-se no comboio apinhado sem poder adivinhar que ficaria a dever-lhe mais, muito mais do que um simples jantar.
- Foste tu que mandaste mensagem primeiro. Pura audácia!
- Está calado que já andavas há meses a sondar-me... 

Estavam tão embrenhados um no outro que nem deram pelo tempo passar. Tremiam-lhe as mãos e os pensamentos enquanto o olhava, presa do maior fascínio. Foi a primeira vez que passaram uma noite inteirinha a conversar um com o outro e parecia haver sempre tanto para dizer. Amanhecia quando a deixou em casa, com um casto beijo na face, a vontade de algo mais a arder-lhes nos lábios e a pairar sobre as cabeças.
- Eras todo um novo mundo por descobrir e ao mesmo tempo sentia que te conhecia desde sempre. 
- De nada me valeram todas as vezes em que tentei desesperadamente fugir de ti. Desinquietaste-me desde o primeiro minuto, nunca ninguém tinha tido esse efeito em mim, nunca. 

Aquilo não era apenas sexo, era sexo do outro mundo, de uma pessoa perder o juízo e interrogar-se por que motivo haveria de querer fazer outra coisa na vida para além daquilo. Estava nervosa como uma rapariguinha que nunca foi beijada, não só na primeira vez como em todas as que se seguiram.
- Não consigo pensar em nada que seja melhor do que isto...
- Melhor do que tu...
Eram horas que ela pedia por tudo que não terminassem nunca. Que durassem só mais um bocadinho, só o suficiente para aquela felicidade não ter de acabar. Mas, por muito que pedisse, chegava sempre o momento de voltar ao mundo que continuava lá fora, à vida que era a sua e que tinha de enfrentar.
- Arrepiavas-me só com palavras, com pensamentos. 
- Ficava sempre com borboletas no estômago, bastava pôr-te os olhos em cima. Corri sérios riscos de me tornar uma pessoa lamechas e pirosa, porque foi só contigo que senti essa vontade. 
- Depois de ter algo tão extraordinário, era impossível voltar a ser apenas comum. 

Enfiou-se no banho e chorou à vontade, até a água quente lhe encarquilhar a pele e os olhos incharem tanto que mal podia abri-los. Ninguém, absolutamente ninguém sabia da dor que a consumia a toda a hora e para onde quer que fosse. Nem ela sabia que tal dor pudesse existir. Pensar em deixá-lo era como pensar em deixar de respirar - e ela não fazia ideia como fazê-lo.
- Foi só contigo que tive certezas, que percebi que queria coisas das quais sempre tinha duvidado. Fizeste-me acreditar no felizes para sempre. Há pessoas que nos viram mesmo a vida de pernas para o ar. 

Nunca chegou a saber ao certo o que se tinha passado, mas a partir daquele dia tudo mudou. Ele falara-lhe de um sonho com ela, com os dois, mas de uma forma tão confusa e atabalhoada que ela nada percebeu. Depois, com a urgência de quem se está a esvair em sangue, disse-lhe que queria mudar-se para casa dela.
- A decisão deixou de ser dificil quando imaginei um mundo onde não podia tocar-te.

Exaustos, adormeceram antes que pudessem sequer dar conta. Arrumada de encontro ao ombro dele, dormiu um sono sem sonhos, pois todos eles se concentravam ali mesmo, naquela cama desfeita onde, momentos antes, se fazia amor.
- Para quem dizia que não conseguia dormir agarrada, parecias muito confortável...
- Até nisso tinha de ser diferente contigo.
Andava há muito tempo à procura das palavras exatas, da melhor forma de descrever o formigueiro que aquele homem sempre lhe provocara, mas a imaginação estava anémica e tudo o que lhe saía dos lábios lhe soava cliché e pateta, tal como o amor deve ser.
- Fazes-me querer ser melhor. Para ti, para nós. E fazes-me melhor, de facto. 
- Contigo sempre consegui ser exatamente o idiota que sou e, por qualquer razão obscura, não só nunca te importaste como ainda te apaixonaste por mim.
- Apaixono-me por ti todos os dias

Não existem histórias perfeitas. Não há finais felizes. Não acredito em contos de fadas. Não acredito em absolutamente nada. Pedi-lhe tanto que não morresse, supliquei-lhe que não me deixasse, rezei por um milagre, chorei, pedi e implorei. Ele não me ouviu. Ninguém me ouviu. Desde esse dia, deixei de falar. Ele morreu-me e eu fiquei muda. Muda de palavras, de emoções, muda para não ter de dar resposta aos lamentos que  chegam de todas as partes, egoísta na dor, zangada com as palavras, alheia a um mundo ao qual já não quero pertencer. Existimos enquanto alguém nos recorda. Ele mora em mim e conta-me a nossa história vezes sem conta, provocando-me sempre borboletas no estômago. Devo-lhe o jantar e toda uma vida.   

Comentários

  1. Lindíssimo.
    Encontrei-te por acaso na busca da palavra vicissitude.
    Tens talento e o dom de encantar palavras.

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