A minha avó






Foi a minha avó que me apresentou ao menino Jesus e me ensinou a rezar. Sentada com o meu primo na penumbra da cozinha e ela, pacientemente, a recitar-nos o Pai Nosso e a Avé Maria, a contar-nos coisas da Bíblia. A minha avó tinha uma fé inabalável. Vestia-se de preto todos os dias, num luto silencioso pelo avô que não cheguei a conhecer. Quando, passados muitos anos, se juntou a ele, escolheu ir de vestido azul. Suponho que quando vamos ao encontro daqueles que nos são queridos, o luto deixa de fazer sentido. A minha avó ia à missa todos os domingos. Por saber que a alegrava, fazia gosto em acompanhá-la. No meu último verão na aldeia disse-lhe tanta vez que ia com ela, as duas estrada fora de mão dada. Não cumpri a promessa. Passaram-se mais de dez anos, mas ainda me odeio por isso. 

Do pátio entrávamos diretamente para a cozinha, que era grande e sem janelas. Tínhamos a luz sempre acesa e, se por acaso a apagávamos, a minha avó refilava porque dizia que a lâmpada gastava muito a arrancar. Era daquelas compridas que piscam um monte de vezes e depois lá se resolvem a acender e esta era para estar sempre acesa. A luz natural coava-se pela porta, vestida de fitas plásticas para não deixar entrar as moscas, mas que não demoviam os gatos de tentar a sua sorte. Da cozinha passava-se para o quarto e depois para a sala, onde a avó tinha o seu altar e eu acesso privilegiado à estante. Ali conheci a Alice do outro lado do espelho, os cartoons de José Vilhena, a história da Sãozinha, a biografia de Jim Morrison e tantos outros, lidos e relidos até à exaustão. De um lado o santuário, do outro a estante. A minha avó sentava-se no sofá e rezava, eu lia ao seu lado.

Os invernos eram sempre rigorosos e passados à lareira. As cadeiras pequeninas, baixinhas, o fogo a arder-me na cara, a entrar pelos olhos dentro. Não havia banheira e a casa de banho – minúscula, com uma sanita e um lavatório sem torneira – ficava da parte de fora de casa. Quando chovia, atravessávamos o pátio numa corrida. O banho era na cozinha, a água aquecida no fogo naquelas panelas enormes, pretas, que mais faziam lembrar um qualquer caldeirão mágico, a bacia azul posta ao pé da lareira que, no Natal, carregava a árvore e o presépio. As músicas estridentes sempre desencontradas, mas a minha avó gostava e, passado umas horas, a gente habituava-se. Adormecia embalada pelo tiquetaque do despertador, matraqueava tão alto que chegava a ouvi-lo nitidamente a dizer palavras, apenas interrompido pelas badaladas do relógio na sala. Quando cresci, quis ficar no quarto lá de fora, onde a coberto da escuridão fumava um corajoso cigarro antes de dormir, rápida e silenciosamente, não fossem as tenebrosas montanhas dar o alerta.

Lembro-me de ir com a minha avó às alminhas, encher as candeias de azeite, tornar a acender as velinhas. De irmos a pé, devagarinho, com a Sagrada Família, para a entregar à próxima casa que deveria recebê-la, cuidar dela, mantê-la segura e alumiada. No Natal, íamos à missa do Galo beijar o menino. Na Páscoa púnhamos ramos no chão a indicar o caminho para o padre ir lá a casa, que tinha sido previamente esfregada e encerada de alto e baixo, a mesa posta com a melhor toalha, os acepipes à disposição, porque o padre podia ter fome, mas não me lembro de ele alguma vez comer grande coisa. A minha avó sim, era muito gulosa e adorava pudim. Aquela vez em que comemos o pudim todo do caminho de casa da tia até casa da minha avó... Voltámos para trás para buscar mais, ora pois claro.

Sinto falta da sopa que mais ninguém sabe fazer ou da massa com bacalhau que tantas vezes comi, do café com leite onde afogávamos bolachas de água e sal, comido antes de dormir, que só me sabia bem lá. Sinto falta dos cheiros, de olhar para os eucaliptos e sentir-me minúscula, de me embrenhar pelos caminhos que levavam ao rio e voltar arranhada das silvas. Das carrinhas que vinham de manhã bem cedo e traziam o pão, o peixe, a fruta. Da excitação que tomava conta de nós quando começavam os arraiais, a que chamávamos invariavelmente de festa, onde comíamos pipocas, algodão doce e aqueles gelados de muitas cores que já não sei onde se vendem – provavelmente não se vendem em mais lado nenhum. A minha avó costumava sentar-se dentro da capela, os conjuntos faziam mais barulho do que aquilo que a cabeça conseguia já aguentar.

Tantas vezes os filhos a arreliavam e eu, miúda, ficava triste porque não gostava de ver a minha avó zangada ou, não raras vezes também, a chorar. Chorava sempre no dia em que voltávamos para Lisboa. Quando lhe dava o abraço de despedida, pedia-me desculpa, entre lágrimas, quando nada havia para perdoar, quando era eu que devia estar a desculpar-me. A última vez que a vi com vida prometi-lhe que voltava para passar o Natal. Lembro-me como se fosse ontem. Estava deitada na cama, encolhida, tapada quase até aos olhos, já tão doente, tão magrinha e eu, estúpida, nem me apercebia do quão mal ela estava. Volto no Natal, avó. Mas eu vou morrer, respondeu-me. Eu vou morrer. Se eu soubesse, se eu pudesse saber. Tão jovem e tão imbecil, incapaz de perceber como é efémera a vida. É inverno e faz tanto frio, mas o maior frio é aquele que vem de dentro. A minha avó dizia sempre que não nos devemos queixar do tempo. Está o tempo que Deus quer, dizia. 

Sou grata pela chuva. Sou grata por existir, aqui e agora. Pela comida que tenho na mesa, pela casa quente que me recebe ao fim de cada dia. Sou grata por não ter perdido a capacidade de sentir. Pelo amor que me rodeia. Pelas pequenas coisas que me fazem sorrir. Sou grata por tudo o que a minha avó me ensinou. Gostava que ela soubesse que eu estava a prestar atenção. Tenho saudades, avó. Espero que no céu haja pudim.

"The pain taught me how to write and the writing taught me how to heal" – Harman Kaur


Comentários