A chegar


 Visto o casaco e saio para a rua. Sei exatamente onde o encontrar.

Uma bofetada de vento gelado desarruma-me o cabelo, que se espalha de imediato pela cara e me entra pelos olhos. Uma tarde de inverno a prometer chuva, nem os bêbedos do costume estão no café da esquina. Não sei onde deixei o carro. 
Aperto o casaco, viro à esquerda e descubro-o ao fundo da rua. Bato a porta com força, pouso a cabeça no volante e fico ali um pedaço a tiritar, hesito entre acender um cigarro ou voltar para casa. A solidão funciona já como uma segunda pele, ao fim de uns meses não encontro melhor companhia. As pessoas enervam-me ou enojam-me, não sei bem, talvez um pouco de ambos. Fico a apreciar o silêncio que se escoa pelos minutos até me decidir a rodar a chave na ignição. O motor ronca, roufenho, diz-me que são horas de partir, agora já é demasiado tarde para recuar. Faço-me à estrada mesmo a tempo de apanhar as primeiras gotas de chuva, ainda bem que tenho o limpa para-brisas avariado.


Ainda é cedo, entro no café praticamente vazio e sento-me ao fundo, ao pé da janela. Saboreio o instante de quietude, o sabor amargo da nicotina, a chuva que principiou a cair. Esgotei com ela as palavras que me restavam e por agora nada mais quero dizer. Nem lhe dei tempo para responder, talvez por medo, num súbito acesso de cobardia desliguei o telefone, como se assim pudesse evitar o pior. Não tenho a certeza do que poderá ser esse pior. Nem tenho já a certeza se lhe devia ter dito todas aquelas palavras. Pouco importa agora. Ela sabe onde me encontrar. 

Tremem-me as pernas à medida que me aproximo. Estas ruas, faz tempo que não vinha para aqui, mas ainda lhes conheço o cheiro. Cheiram a serões em frente ao televisor, a domingos preguiçosos, a torradas acabadas de fazer. Cheiram a regresso a casa. E eu estou mesmo quase a chegar.


Olho pela janela, duas, três vezes, torno a olhar, repetidamente, talvez para me distrair, talvez para me certificar que ainda chove. Por aquela porta já entrou um velho conhecido do dono do café, que se arrumou ao balcão, um grupinho que se concentrou ao pé das setas e um casal enfadonho que não troca palavra desde que se sentou. Não há sinais dela. Nunca gostou muito de cá vir. Não apreciava o sabor do café nem se entendia com o dono, aborrecia-a as suas pretensas familiaridades, os seus pedidos de trocas de mesa conforme lhe dava mais ou menos jeito. Parece que a estou a ver a torcer o nariz enquanto remordia baixinho que não voltava a pôr cá os pés. Cumprirá a promessa? Volto a olhar pela janela, mas não é ela que está a chegar. São sarilhos.   

Não gosto de me meter na vida dos clientes, mas às vezes há conversas que não podemos deixar de ouvir. Sobretudo quando são dois tons acima do aceitável. Estou para aqui atrás do balcão a fazer de conta que não dou por nada, mas se não pararem com a gritaria vou ser obrigado a intervir. Gosto dos dois, conheço-os já há alguns anos, mas tenho metade do café de olhos postos neles, a sorte é que isto ainda está a meio gás, é cedo, o pessoal ainda está em casa a digerir o almoço. Eu nem sou de intrigas, mas cheira-me que não era esta a companhia que ele esperava, ou muito me engano ou os dez anos que trago a servir atrás de um balcão dizem-me que isto ainda vai piorar.
 

Parou de gritar e está aqui sentada à minha frente, inconveniente como só ela sabe ser, depois de me deixar os nervos em franja ainda tem o desplante de não arredar pé, de ficar tipo estátua a olhar para mim, só me apetece arrancar-lhe os olhos e pedir-lhe que se cale para sempre. Tenho de ser eu a levantar-me e acabar com este disparate, quero sair para a chuva gelada e esmurrar o vento mas, assim que me ponho em pé, crava-me as garras no braço e sinto a paciência a esvair-se. Preciso de chamar a mim o pouco sangue frio que ainda me corre no corpo para não fazer o gosto aos punhos, afinal de contas não bato em senhoras, ainda que ela de senhora pouco tenha.

Ando às voltas com o carro há uns bons dez minutos e não é por falta de estacionamento, mas sim de coragem. Tão perto já, tão distante ainda. Deixo o carro para trás, a chuva lava-me de todas as indecisões, que importa se me estraga o cabelo. Que mais pode importar quando se tem a vida à espera, ali, ao virar de uma esquina. A solidão que durante anos me queimou prepara-se agora para me abandonar e a cidade chora em despedida. Ainda me tremem as pernas quando atravesso a rua e ali, ao virar da esquina, dou de caras com ela. Só ela e eu, os seus olhos a lerem nos meus sabe-se lá que espanto e desilusão. Agora que finalmente cheguei, está na hora de ir embora.

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