Ex-marido


Faltava pouco para o sol acabar de se pôr. Era apenas uma questão de minutos até o céu alaranjado se arrumar para dar passagem ao cinzento que antecedia a treva. Estava um dia frio de abril, as ruas nuas, as nuvens grávidas de chuva. Deixou que o vento lhe lambesse os cabelos louros durante um bom bocado antes de começar a andar. Andou durante mais de uma hora, andou por andar, sem objetivo, sem rumo, a pisar a noite. Aquele encontro apanhou-a desprevenida. Afinal nem era tão bonita quanto se dizia e não, não era o despeito a falar. Era apenas uma mulher e, tal como ela, ficara sem saber como reagir. Uma mulher que tinha preferido fugir a ouvir o que ela tinha para dizer. Teria alguma coisa para dizer, na verdade? Nem disso estava certa. Doía-lhe a cabeça e o orgulho, pelo que recuou três passos e empreendeu o caminho de regresso a casa.

Mais de vinte anos se tinham passado desde que pousara pela primeira vez o olhar no marido. No ex-marido, aliás. Ainda lhe custava aceitar o prefixo. Ainda lhe doía aquela ausência tão presente. Conheceram-se num verão despreocupado, quase perfeito. Não passavam de dois adolescentes cheios de planos, a desenhar um futuro que tinha tanto de incerto como de excitante. Ele convidou-a para um gelado, ela disse que não. Foi a primeira e única vez que foi capaz de lhe negar alguma coisa. Os anos passaram, ele foi-se deixando ficar. Até ao dia em que resolveu que não voltava mais. Ela não acreditou, ainda não acreditava, mesmo depois de ver aquela mulher à porta do bar continuava sem poder aceitar que desta vez era mesmo diferente.

Serviu o vinho com vagar. Estava há horas a ansiar por aquele momento e o ritual saiu-lhe na perfeição, o líquido espesso a tingir o copo de vermelho, nem uma única gota derramada. O marido não gostava de beber, sempre desaprovara aquela sua fraqueza. O marido, que agora era ex, já não estava ali para a julgar com censuras veladas e olhares carregados de reprovação. Nunca lhe tinha perdoado o que acontecera no casamento do irmão. Do vinho ela passou para o gin e do gin para o microfone do palco, de onde saiu em braços. Ficou dias a fio sem lhe dirigir a palavra, sem sequer a fitar a direito nos olhos. Como seria agora com aquela mulher? Será que também o fazia sentir vergonha alheia ou esse era um privilégio só seu?

Ele nunca quisera um filho. Pelo menos não com ela. A princípio ainda pensou que, com o tempo e a convivência com outros casais e respetivos rebentos, talvez ele mudasse de ideias e lhe desse um bebé rosado e sorridente, gorducho como todos os bebés devem ser, de olhos azuis como o pai. Aqueles olhos aos quais não se conseguia dizer que não. Mas o tempo passou, um ano após o outro e o bebé acabou por não chegar nunca. Agora tinha o ventre seco como uma ameixa e para sempre perdido a ilusão de embalar o seu menino nos braços. Ele atrevera-se a tirar-lhe isso e simplesmente virara-lhe as costas. Sozinha e estéril como um deserto, enquanto aquela mulher destilava juventude por cada poro. E se ele tivesse um filho com ela? A mão tremeu-lhe quando serviu um segundo copo, o vinho sangrou para a mesa, para o chão, dentro dela, toda ela sangrava.

Tinha saído vencedora daquele encontro, tinha-a encarado bem a direito nos olhos, não fora cobarde, não se limitara a dar as costas. Expor o flanco nunca, afinal de contas bebia para celebrar a vitória. A vitória de uma casa de ecos e memórias enquanto algures, não muito longe dali talvez, aquela mulher punha as mãos em cima do seu marido. A vitória de mais uma noite em que acabaria caída no tapete da sala, para acordar enregelada pela madrugada e rastejar até à cama que tinha sido dos dois. A vitória de de sobreviver a mais um dia. Afinal de contas, que mais era a vida a não ser sobrevivência?

O sol já se pusera há muito, agora já só havia trevas e duas garrafas vazias. Quase que sorriu. Talvez fosse boa ideia abrir outra.

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