O mundo lá fora

 
As portadas de vidro embaciadas dão para a varanda e a varanda dá para o mundo. As luzinhas ao longe, a perder de vista, prédios até onde os olhos podem alcançar, os montes que parecem quase ali ao lado. Senta-se no canto do sofá e cisma, tenta adivinhar que vidas se escondem para lá da vida que é a sua. Que medos, que anseios, que razões para sair da cama todos os dias. Nunca vai à varanda. Limita-se a ficar naquele pedaço de sofá, atrás das vidraças embaciadas, uma simples espectadora do mundo lá fora. As luzes, os prédios, os montes, as vidas escondidas da sua.

Há sensações que não se explicam.

Lembra-se de voltar para casa de mão dada com a mãe, a noite escura que lhe dava pesadelos, o vento na cara. Estava sempre vento. As escadas passavam pelas traseiras dos prédios, não havia candeeiros a iluminar-lhes os passos. Quase se atrevia a ter medo, mas ia de mão dada com a mãe. A mãe que nunca tinha medo de nada, a mãe que nunca deixava que ninguém lhe fizesse mal, nem mesmo quando aqueles homens maus lhes saltaram ao caminho, numa noite como aquela. A mãe que havia de ficar nessas escadas, bem que chamou por ela mas já não lhe respondia, nunca mais respondeu. Ninguém para lhe pegar na mão no regresso a casa.

Tem sempre as luzes apagadas. O medo do escuro morreu no mesmo dia que a mãe. As luzes ficaram no mundo lá fora, vê-as da janela da casa afogada em escuridão.

Era apenas uma criança quando três miúdos a cercaram no recreio na escola e tentaram despir-lhe a camisola. De repente juntou-se muita gente a assistir, muitos outros miúdos que apontavam para ela e riam e faziam troça, mas nenhum a foi ajudar. Não foram mais de três minutos, mas mudaram-na para sempre. Foi nesse dia que começou a comer. Comeu a vergonha, a humilhação, a impotência. Comeu tanto que acabou a vomitar. Comeu até garantir que nunca mais ninguém lhe ia tocar, comeu até não conseguir sair daquele pedaço de sofá que dá para a varanda e de onde vê o mundo.

Há mais de três décadas que não é tocada por ninguém. Tem os cães, que são a sua vida e alento. Ao contrário das pessoas, os animais não a podem ferir.

Ficou ao cuidado de uma tia sem a mínima vontade de a cuidar até arranjar coragem para reunir os escassos pertences e cruzar a porta pela última vez. Passou a madrugada num banco de autocarro e quando o dia nasceu fez-se à estrada. A tia nunca tentou encontrá-la. Não havia ninguém no mundo à sua procura nem era esperada em parte nenhuma. Deitou-se na campa da mãe e pensou em simplesmente ficar ali, com ela. Fechou os olhos e quase podia jurar que lhe sentia o cheiro. A mãe a levá-la pela mão, a mãe que não tinha medo de nada, a mãe que estava ali debaixo de terra, naquele pedaço de chão frio. Gastou todas as lágrimas que tinha, depois daquele dia nunca mais chorou.

Acende todas as luzes, uma por uma. Entreabre a porta da varanda, fica parada a ver os prédios, os montes, a vida a palpitar, que passa sem se deter. Ensaia dois passos, hesita, recua, fecha a portada de vidro embaciado. Volta para dentro, chama de novo a si a escuridão.

O mundo continua lá fora.

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