Fome


Arruma-se entre os lençóis amachucados, tão finos que não chegam a aquecer o corpo. Ninguém se preocupou em fazer a cama, esquecida num quarto onde as janelas ficaram por abrir. Roupa encardida espera pacientemente espalhada no chão que nunca conheceu água. O nariz que pinga. Fecha os olhos com força para não ver a solidão chegar.

Ele entra pouco depois, de olhar entornado e com as mãos calejadas vazias. Os ossos cravam-se-lhe na pele enrugada, a fome presente em cada traço daquela velhice precoce. Hoje não tenho nem uma migalha de pão para dar de comer aos nossos filhos. Fala baixo, quase num sussurro. Esconde a cara nas mãos.

Estão os três encolhidos a um canto, os olhos muito abertos, parecem quase grandes demais para a cara. Já se cansaram de implicar uns com os outros, o mais pequeno choraminga. O maior não tem mais de dez anos. Abraça o irmão num pacto mudo, numa compreensão que não precisa de palavras.

Puxo os lençóis para cima da cabeça, como se assim pudesse desaparecer. Quero ser invisível. Quero estar em qualquer lado, em todo o lado, menos aqui. Os meus filhos choram. Os meus filhos não têm nem uma côdea para comer. A minha testa escalda, a febre que teima em não me deixar. Ele continua com a cara nas mãos. Hoje não tenho lágrimas para chorar. 

A vida nem sempre foi assim, encerrada naquele casebre de paredes enegrecidas. Tempos houve de lençóis limpos, flores no friso da janela, roupa bem engomada e comida na mesa. Mal ouviam a chave na porta, corriam os três a pendurar-se-lhe nas pernas. Punha o mais novo às cavalitas, os outros dois debaixo do braço, dava um beijo à mulher. Nunca entrava nem saía de casa sem a beijar. E a vida seguia ligeira.

Deixou de me tocar por completo. Não se chega sequer a aproximar. Os meus filhos passam fome e o meu marido não me toca. Todo o meu corpo está dormente.

A tristeza hospedou-se na casa e foi ficando, até se habituar a fazer parte deles. De tanto conviverem com ela já não notavam a sua presença incómoda. O mais novo procura pedaços de cotão ao fundo do quarto e mete-os na boca, a enganar a fome. Mas a fome não se deixa enganar por um miúdo de dois anos, que recomeça a chorar. Os irmãos mudos, a mãe debaixo dos lençóis, o pai a espremer a cara nas mãos. O calendário diz que é Natal. 

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