Trinta e dois


Não o voltei a ver depois disso. Minto, vi-o uma vez, meses depois, a atravessar a rua de mãos enfiadas nos bolsos do casaco de malha, um sulco a vincar-lhe a testa, os lábios apertados num esgar. Caminhava depressa sem se deter. Era uma daquelas tardes de outono descuidadas e ventosas, em que as folhas descem a avenida aos tropeções e os dias sabem a desalento. Quis apressar o passo, ou mesmo esconder-me num qualquer recanto, atrás de uma árvore, entrar numa loja, mas fiquei imóvel na berma da estrada, o vento a chicotear-me a cara, as folhas a dançarem-me aos pés. Passou por mim sem sequer levantar o olhar, firmemente pregado na calçada, como se fosse a coisa mais importante do mundo.

Fomos casados durante trinta e dois longos anos. Choveu no dia do casamento, mas o nosso esteve longe de ser abençoado. As fotografias mostram uma rapariguinha num triste vestido branco, ainda mal tinha completado vinte anos, um ramo de orquídeas na mão, toda a ilusão de uma vida a dois inscrita no sorriso enquanto olhava para a objetiva do fotógrafo. Não precisei de esperar muito para que o riso desse lugar primeiro às lágrimas, depois ao olhar vazio de quem já nada teme ou espera. Se calhar devia ter prestado atenção aos sinais. A mirada gélida enquanto estava a dançar com o meu irmão ou a forma como me apertou o pulso quando, depois do corte do bolo, fui dar uma fatia ao meu pai. O primeiro olho negro ganhei-o nessa mesma noite, a primeira como marido e mulher.

A minha não foi diferente das outras histórias. Podia ter ido embora nessa mesma noite, mas fiquei. Fiquei e acordei com a cara inchada e o mais sentido pedido de desculpas, que em nada tinham perdão. Podia não ter perdoado, mas perdoei. Às desculpas sucederam-se as costelas partidas, os abortos, que de espontâneos só tiveram os pontapés que me mataram dois filhos, e a forma carinhosa que arranjou para me tratar quando consegui aguentar uma gravidez até ao fim - grande rameira, tenho a certeza de que não é meu, não passas de uma puta.

Os caracóis loiros, a covinha no queixo, os olhos de pálpebras descaídas, era todo ele igual ao pai, em tudo exceto no temperamento. Desde tenra idade era o miúdo mais doce que uma mãe pode sonhar, para desprezo e asco do pai. Nunca lhe encostou um dedo porém, guardava esses mimos para mim. Nunca o levou à escola ou a lado algum, ridicularizava-o pela voz fina e modos delicados, proibia-o de pintar ou desenhar, as coisas que mais gostava de fazer no mundo. Cedo revelou um dom especial para a arte mas, quando já mais crescido, chegou a casa com tintas, telas e um cavalete, o pai atirou tudo pela janela enquanto repetia - em minha casa não há cá paneleiragens.

O meu filho demorou menos tempo que eu a sair de casa. Quando me vi sozinha outra vez achei que não me restavam mais motivos para viver e encetei uma fraca tentativa de acabar com a minha miserável existência, que apenas contribuiu para a tornar mais miserável ainda. Mas após trinta e dois longos anos, fui-me embora e nunca mais voltei. E, apenas uns meses depois, ali estava ele, com o seu casaco de malha, a atravessar aquela rua onde eu, por momentos, me fiz invisível.

Ali fiquei na beira da estrada, o casaco de malha a afastar-se depressa, a transformar-se apenas num pontinho na multidão, até que simplesmente desapareceu. Da minha vida, do mundo. Desapareceu e depois disso, aí sim, não mais o voltei a ver.

Comentários