Atingiu-me em cheio na cara. A caminho de casa, depois de um dia trabalho igual a todos os outros, um ligeiro desapontamento por não me ter ocorrido mais cedo. Finalmente aconteceu, após meses e meses a ruminar o incómodo que me provocava e já não consegui pensar em mais nada. Quis chorar logo ali, onde não havia ninguém e podia simplesmente existir.
Quis chorar ao voltar a ver a criança franzina e desajeitada, com os collants a escorrerem pelas pernas abaixo enquanto corria atrás da miúda mais gira e popular da turma e implorava uma aceitação que não chegaria nunca. Ou a adolescente insegura que levou uma mala da mãe para a escola, dourada, vistosa, dos tempos em que a mãe ainda era nova e gira e não conseguiu emitir um único som quando as colegas lhe arrancaram a mala do ombro e lhe perguntaram se era puta.
A mulher que se encolhe a um canto no elevador e aterra o olhar no chão, o esforço inconsciente que faz por tornar-se invisível. Se não nos podem ver não nos podem ferir. A mirada rápida e dolorosa ao espelho, o incessante tagarelar ao qual responde com um sorriso acanhado, por favor não me odeiem. É mais fácil dar a conhecer a personagem que a pessoa, tão desenquadrada, ferida em si mesma e no mundo, o desejo patético de agradar, um esforço quase deplorável para pertencer.
Mais do que as pernas tortas e ossudas, as bochechas demasiado redondas, mais que os dentes tortos ou um cabelo que não é carne nem peixe, era muito mais que isso. A meninice passada inteiramente a fingir ser um outro alguém. Qualquer outro, desde que não eu. A imitação frenética, compulsiva, usar, gostar e fazer tudo exatamente como a minha irmã. A minha irmã que era linda e cool e adorada por todos e "não percebo como é que uma boazona destas pode ser irmã deste palito de merda".
Não se odeia as mulheres confiantes, aspira-se a sermos mais como elas.
Estão a vir ao de cima, inundam-me, acho mesmo que me vou afogar e não sei como voltar a empurrar tudo para aquele recanto profundo e obscuro e tão meu. As feridas sobre as quais não falamos são as que nunca estancam por completo.
As memórias que enterramos são aquelas que nunca desistem de nos perseguir.
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