Antes


Antes de ser casa, antes de ser a minha casa. De ter as minhas coisas, os meus cheiros, revistas e jornais espalhados pela mesa do pequeno-almoço, as gaiolas dos periquitos na cozinha, os sapatos alinhados no corredor, as flores nos parapeitos das janelas. Antes era só paredes e teto e chão e uma mão cheia de planos. Cheirava a casa vazia, a tinta e a promessas de futuro. Entrava e sentava-me no chão empoeirado, olhava pela janela e era completamente feliz. Antes de ser casa, antes de ser a minha casa.

Antes saía era noite escura e chegava com a noite ainda mais escura. Sabia que evolução era apenas questão de tempo, trabalho e dedicação. Que acabaria por chegar ao sítio onde me esperavam. O que antes não sabia é que não era esperada em parte alguma.

Há um tempo antes e um tempo depois das palavras. Não há nada que possa ser mais doloroso que palavras. Depois de serem ditas, não há como voltar atrás. Não há tempo que não cure um olho negro. Não há tempo que chegue para curar as palavras que nos imprimiram na mente, mais permanentes que tatuagens. 

Tinham chegado ao fim os dias do antes, a água quente do chuveiro a lavar corpo e anseios e lágrimas. Impunha-se o agora, que tardara a chegar, mas que rapidamente trouxera o sabor do antes. O que poderia haver depois? Andamos sempre tão obcecados com o antes e o depois que já não sabemos viver o agora? O dia que passa. Para onde irá, quando a noite cai?

Aqueles instantes antes de começar a chover. Preservar para sempre este momento, este aqui e agora misturado com o cheiro da chuva. O segundo que precede a morte. A vida a seguir o seu rumo, na sua eterna indiferença. A chuva que continua a cair. 

Nada há para me aquecer o corpo.

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