O Berguilhas


Desligou o computador, alinhou o teclado e o rato, devolveu à gaveta uma pilha de papéis meticulosamente organizados. Alisou a camisa e, em passinhos curtos e apressados, contornou a secretária e murmurou um até amanhã para um escritório demasiado vazio para lhe responder. Era sempre o primeiro a chegar e o último a sair e fazia-o da única forma que sabia - invisível perante o mundo que parecia existir unicamente para o atormentar. Mas amanhã seria um novo dia ou apenas mais um, perfeitamente igual ou pior que o anterior e o que lhe iria suceder.

O autocarro de janelas gordurosas cuspiu-o na última paragem. O prédio de quatro andares sem elevador ficava numa ruela pouco iluminada, não muito longe da zona industrial da cidade. Ali, o fedor a lixo e podridão dos caixotes por despejar casava com o fumo acre vomitado pelas chaminés das fábricas. Subiu as escadas no seu passinho apressado, ignorando a discussão no segundo andar e o permanente cheiro a fritos do terceiro. A casa era fria e transbordava humidade. A despensa acusava falência, pelo que se arrumou entre os lençóis húmidos e esperou o sol nascer.

O Berguilhas, era assim que lhe chamavam no escritório, tudo porque tivera uma vez a infelicidade de sair da casa de banho com o fecho das calças por correr. Uma risota pegada, o bando de idiotas que nomalmente se limitava a ignorá-lo tratou de imediato de o ridicularizar com uma alcunha. E o facto é que o nome pegou, ninguém ali o conhecia por outro. Antes de ser o Berguilhas era o miúdo novo do cubículo quatro, ainda que já lá trabalhasse há mais tempo do que a maioria, nunca ninguém tinha dado por ele, nunca,  até ao episódio da casa de banho.

Tinha sido, hoje como em todos os outros dias, o primeiro a chegar. Gostava deste silêncio matinal tanto quanto um gato gosta de festas no queixo. Ronronou de prazer ao deslizar para trás da sua secretária, impecavelmente arrumada, tal como a deixara na véspera. Inalou com prazer o cheiro bafiento dos papéis e neles se embrenhou até o primeiro idiota entrar. "Estás cá hoje, Berguilhas? Não é tarde nem é cedo, vai ali tirar-me um cafezinho, sim? Curto, sem açúcar. E, já agora, aproveita e vê se não tens a berguilha aberta."

As horas escorriam mais lentas que o habitual. O patrão estava de mau humor e tinha o escritório a andar em biquinhos de pés, sem as constantes conversinhas pessoais, as graçolas de mau gosto, até mesmo sem o incessante vaguear pela vida alheia, constantemente despejada naquilo a que chamavam as stories, algo de que ele já tinha ouvido falar mas não sabia ao certo o que era. Distraído, foi dar por si a fitar a Carminho, no cubículo mesmo ao lado, bonita como ela só, uma perdição de mulher, o que ele não daria por um minuto que fosse da atenção dela, daquela boca, aqueles olhos, o cabelo, preto como a asa de um corvo, mais escuro que breu, negro, que era como ele sentia que tinha a alma e o corpo por dentro. A Carminho. Se ao menos ela soubesse o seu nome.

Desligou o computador, alinhou o teclado e o rato, arrumou os papéis. Escritório vazio. O dia a repetir-se. Mais um.

Mas hoje era domingo e aos domingos não ia para o escritório. Caía uma chuva fria e teimosa, daquelas que tendem a prender as pessoas em casa, mas ele gostava de chuva desde miúdo e achou que valia a pena ir ao seu encontro. Não quis esperar pelo autocarro. Queria, sim, andar à deriva, andar sem rumo, andar por andar, andar até as pernas cederem e se ajoelharem no asfalto. As ruas ermas e o cheiro do alcatrão molhado impeliam-no. Não sabia, não podia saber, que aquele domingo de chuva, que se adivinhava igual a todos os outros, ia mudar-lhe para sempre a vida.

Ouviu primeiro o grito. Lancinante, de animal ferido. Vinha de um beco não muito longe e, quando se aproximou, foi acometido pela certeza de que já nada podia fazer por ela. Sangrava abundantemente, o sangue a misturar-se com a chuva, a vida a sair em golfadas e a esvaziar-lhe o olhar. Já não gritava. Olhou para ele numa súplica e, perturbadoramente, ele sentiu-se abençoado por poder assistir à morte que assim se impunha. Foi então que se apercebeu, que se deu conta como que por magia do que tinha estado todo aquele tempo defronte dos seus olhos e ele cego, estúpido, sem compreender nada, sem ver que a vida de todos aqueles  idiotas, que tanto o ridicularizavam, que o ignoravam, que constantemente o diminuíam, a vida deles, de todos eles, dependia única e exclusivamente da sua vontade. Era dono e senhor de todas aquelas vidas patéticas e isso atingiu-o como um raio enquanto fitava aquele corpo exangue, ainda morno mas já inerte.

Amanhã. Amanhã o dia não seria igual a todos os outros. Amanhã não seria apenas mais um dia. Amanhã ele não seria apenas o Berguilhas, o invisível, o esfregão velho e imprestável. Amanhã.

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