Retalhos



Nunca gostou de crianças, nem quando era ela mesma uma. O cérebro não se lembrou de registar momentos felizes da infância, se é que eles existiram. Batiam-lhe no recreio, ignoravam-na no parque infantil, repreendiam-na na sala de aula, humilhavam-na a toda a hora. Sentia-se apoucada a cada passo que dava, a cada palavra que não chegava a dizer. Queria crescer depressa. Os outros eram sempre melhores e ela para ali estava. Diminuída.

Começou logo com o nome que lhe puseram. O nome fica com uma pessoa a vida toda e não há muita coisa que fique com a gente a vida toda.

Cresceu como pôde, como a deixaram. O corpo medrou-lhe depressa e trouxe-lhe mais dissabores que alegrias nos anos conturbados em que se fez adolescente. Cedo descobriu que a maldade e o sexo feminino andavam muitas vezes de mãos dadas. As roupas largas e sem graça que usava não eram o suficiente para lhe dissimular as formas que homens cobiçavam e mulheres invejavam. Se ao menos pudesse esconder-se num buraco escuro, para sempre invisível, esquecida, mudar de pele como os lagartos, renascer noutro corpo, qualquer outro, desde que a deixassem em paz. Começou a comer como uma louca, a comer tudo o que lhe aparecia à frente, comer sem fome, comer só por comer, desejando acordar um dia a pesar 100 quilos.   

O medo a amachucar-lhe os nervos, o nervosismo que lhe sacudia a voz, a ansiedade que lhe amarinhava pelo corpo. Aquela personalidade tão sua, que tanto odiava. 

E de repente tem 16 anos outra vez e está naquele vão de escadas de onde ele não a queria deixar sair. Não sem antes a deixar estendida no chão frio, sem dignidade, sem roupas, sem nada sentir. Maldito corpo que uma vez mais a atraiçoava. Passado um mês estava a vomitar e tinha uma parteira de unhas sujas entre as pernas. Uns minutos apenas e tudo acabou, esvaziaram-lhe o ventre e rasgaram em tiras o único pedaço de amor próprio que lhe restara. Bastaram uns minutos no vão de escadas frio, uns minutos com a parteira de unhas sujas. Os minutos que a mudaram para sempre. 

Pegou na faca e deixou que ela abrisse caminho. Enterrou-a na carne uma e outra vez, percorreu a pele ao acaso, como se de um território desconhecido se tratasse, descobrindo novos atalhos. O chão tingido de vermelho. O corpo dilacerado, em retalhos. O exterior finalmente a condizer com o interior. Uma grande cicatriz mas, desta vez, bem visível. 


Nunca gostou de crianças e depois de matar a que não chegou a nascer, matou para sempre toda e qualquer possibilidade de alguma vez poder ter alguma. Já sabia desde muito nova como viver com a dor, pelo que deixou que se lhes juntasse a solidão e seguiram as três de mão dada pelo mundo onde nunca soube pertencer. 


Comentários