O Berguilhas - parte 2



E o amanhã chegou e transformou-se no hoje e hoje ele já não se sentia aquele homem de ontem, que tudo podia sem nada temer, aquele homem cuja vontade não dependia de nada nem de ninguém, o homem que olhara a morte bem de frente e com ela fizera um pacto, o homem que tinha desafiado a chuva manchada de sangue e fora para casa a sonhar com o amanhã, mas esse amanhã chegara somente para lhe dizer que tinha permanecido encerrado no ontem e hoje ele era novamente o Berguilhas, apenas o Berguilhas, o triste e estúpido Berguilhas que acreditara que as coisas podiam, de facto, ser diferentes.

Chegou atrasado pela primeira vez em quase onze anos. A camisa desalinhada a espreitar para fora do cinto, as olheiras mais fundas que o poço onde tinha morrido aquele miúdo de Málaga. Desejou também ele estar morto e, pela primeira vez em quase onze anos, não deu os bons dias a ninguém. O patrão estava fora, naquilo a que pomposamente gostava de chamar reuniões de negócios, e o escritório fervilhava de ausência de chefia e do ócio próprio de uma segunda-feira que ninguém tinha pedido que chegasse. Arrastou a desilusão que o habitava até ao seu cubículo, em passos pesados de noite por dormir.                       

Desligou o computador e, pela primeira vez em quase onze anos,  não alinhou o teclado e o rato nem arrumou os papéis na gaveta.

Sentado na paragem à espera do autocarro que tardava, o corpo a pedir-lhe que não fosse já para casa, o que sempre fazia depois de sair do escritório. O corpo remexia-se inquieto e o Berguilhas não sabia que estranhos ímpetos eram aqueles que lhe pediam mundo. Levantou-se a medo, hesitou mas resolveu ir beber um copo ao café logo ali em frente. Não gostava de beber, o álcool deixava-o tonto e enjoado mas, mal entrou, viu a Carminho ao balcão e de imediato sentiu um calor a envolver-lhe as entranhas. Lembrou-se dos filmes que via no cinema, em que os homens sofisticados bebiam whisky e fumavam charutos, e esforçou-se por não cuspir o estômago ao primeiro trago. Os colegas lá estavam numa mesa ao fundo, a Carminho mesmo ao lado do idiota que lhe dera a alcunha que se colara a ele como uma segunda pele, a alcunha que o definia, que o diminuía até nada mais restar da identidade que um dia julgara ter. Quando ganhou coragem e ensaiou uma fraca tentativa de se juntar a eles, levantaram-se e passaram a porta sem o ver. Invisível, uma vez mais.

O último autocarro tinha partido já há várias horas. Fez-se à estrada aos tropeções, a agarrar-se às paredes, aos muros, aos caixotes, a tentar dominar a mão invisível que lhe espremia o estômago e a cabeça que teimava em girar cada vez mais depressa, como se estivesse num carrossel onde a música não parasse nunca e ele girava, girava sempre, numa dança sem fim. Vomitou até se ajoelhar no asfalto, vomitou a camisa desalinhada, o cinto, vomitou os sapatos coçados a imitar pele. Por momentos pensou que ia morrer, era agora, tinha chegado a sua hora, finalmente tudo ia acabar, toda a tristeza e solidão, todos os anos de humilhação, tudo se resumia àquele momento em que ia morrer a vomitar no meio da estrada, sem uma ponta de dignidade na morte, tal como nunca a tivera em vida.

Não morreu, não desmaiou sequer. Engoliu as lágrimas e a vergonha e cambaleou até casa, depois de subir de gatas os quatro andares do prédio sem elevador. O permanente cheiro a fritos no terceiro. Ao menos no segundo a discussão já tinha amainado.

Pela primeira vez em quase onze anos, o sol despontou e o Berguilhas não foi trabalhar. 

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