Caderno



Abro a gaveta, agarro no caderno que ela me trouxe de Itália e onde tenho vindo a alinhavar o que me corre dentro. Já se passaram oito anos desde a primeira vez que o manchei de tinta, mais ainda desde que ela mo deu. Não sabia o que escrever, queria que fosse diferente, algo organizado, inteligente, uma coisa estruturada ou apenas retalhos? São pedaços de mim, espalhados pelas páginas que ela me trouxe de Itália. Outrora irmãs, as melhores amigas, hoje não trocamos palavra, não sei nada da vida dela, o que a faz rir, o que gosta de comer, quando foi a última vez que chorou. A mim apetece-me chorar a toda a hora, mas há muito que deixei de o fazer.

O tempo passa sem que me decida. O medo de não ser capaz, sempre o medo à espreita. São tão mais fáceis os retalhos, tão mais fáceis que construir um todo completo e coerente. O que há de errado na incoerência? Pobre do homem que não é incoerente, já dizia o outro. Sei o que sou, mas ainda não faço ideia daquilo que posso vir a ser.

Decidi-me a 25 de outubro de 2011, uma terça-feira. Comecei por esclarecer quem no futuro vier a ler-me sobre as funções do jornalismo - inquietar, fazer pensar, emocionar - aprendidas numa aula em que resolvi prestar atenção. Foram as palavras que escolhi para inaugurar o caderno que ela me trouxe de Itália. Foram essas como poderiam ter sido quaisquer outras. Podia simplemente ter ficado em branco, para sempre despido, como o bloco de notas que ela me trouxe de Madrid e onde nunca pousei a caneta. 

Não posso parar porque parar é aceitar o quanto sou comum, o quanto sou medíocre, o quanto sou apenas mais uma. Parar é reconhecer a minha total incapacidade para marcar a diferença. Como é duro ser só mais um rosto na multidão. Nunca gostei de multidões, são estúpidas e amorfas.

Em que momento deixámos de nos conhecer? Os instantes roubados após um longo dia de trabalho, depois de o comboio nos despejar na estação, aqueles minutos em que ficávamos em silêncio, lado a lado, sentadas no carro, um cigarro por companhia. Os fins de tarde no café e a conversa que nunca se esgotava. O gelado a selar o fim de um dia inteirinho passado na praia. Em que momento nos perdemos uma da outra?

Deslizo as páginas pelos dedos, sinto-lhes o cheiro. Vinte páginas, não mais, abro numa ao acaso, os olhos pousam aqui e ali, distraídos, aterram numa frase por entre as muitas frases dispersas.

"Chorou muito nos primeiros meses, depois não chorou mais, e devíamos saber que as mulheres mais destruídas são aquelas que já nem sequer choram."


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