Velhos terrores


O cheiro a madeira queimada dominava a sala de uma casa tão grande que poderia albergar várias famílias. Grande demais até para conter tamanha solidão. Uma solidão que se refletia em cada recanto, fazia ricochete nas paredes altas, amarinhava pela escadaria, infiltrava-se nos móveis envernizados. Era essa solidão que tão bem conhecia que tinha hoje por companhia, hoje como fora ontem, hoje como seria amanhã, tinha-a hoje e tê-la-ia sempre, numa noite negra que lhe despertara velhos terrores. Tentou sacudi-los concentrando-se no delicioso cheiro da madeira a arder, no fogo que o fascinava desde que se sabia como gente, podia ter a lareira acesa dia e noite, inverno ou verão, a lenha a crepitar naquela sala antiga onde o relógio por vezes se esquecia de dar as horas. Havia momentos em que quase podia jurar que conseguia ouvir a voz do pai, sentado na poltrona de orelhas, a pedir o jornal enquanto equilibrava os óculos na ponta do nariz. O pai que em março faria setenta e quatro anos, não fosse ter sido atropelado há mais de vinte.

Sentou-se no chão, olhos postos no fogo, braços a abraçar os joelhos, a noite a invocar-lhe sensações que não saberia pôr em palavras. Costumava pendurar-se nas janelas de grandes vidraças, debruçar-se sobre a cidade ao longe, as luzes pequeninas a tremeluzirem num mundo que desconhecia, que nunca teria oportunidade de ver. Gostava de imaginar o que haveria para lá das luzes pequeninas, das casas na cidade ao longe, se também estaria alguém pendurado na janela a olhar para a grande mansão isolada do mundo, alguém a interrogar-se sobre o que poderia haver para lá das paredes enegrecidas pela humidade, para lá da solidão que transbordava por cada frincha. Mas hoje a noite era negra e trouxera consigo toda uma série de velhos terrores que há muito o atormentavam, terrores que lhe garantiam com a mais absoluta das certezas que ia morrer, que ia morrer ali sozinho, que ia morrer naquela casa grande e velha, que ia morrer e que não haveria uma única pessoa para lhe sentir a falta.

Não saberia dizer quando tinha começado este estranho pavor da morte. Talvez naquele dia de calor em que se aventurou até à ribeira, teria uns seis ou sete anos. Quando sentiu a água fria a invadir-lhe o nariz, os pulmões a arder, o cérebro a gritar por oxigénio. Talvez quando viu o seu único e verdadeiro amigo, o mais fiel que alguma vez viria a conhecer, espumar até ficar inerte, a língua a pender da boca arroxeada, os olhos vítreos, o corpinho peludo rígido. Talvez quando assistiu ao definhar da mãe, dia após dia a tornar-se mais branca que os lençóis que lhe cobriam o corpo desfeito pelo cancro. Talvez durante os dias, meses, anos em que não trocou uma única palavra com ninguém, trancado naquele casarão enorme, com a certeza única e pungente de que ia morrer, ia morrer ali sozinho e ninguém, absolutamente ninguém, iria dar conta da sua morte.

E eram os pesadelos, recorrentes, sempre os mesmos, a arrancá-lo ao sono, que o deixavam a arquejar, os cobertores empapados em suor, o coração a galope. Começavam sempre da mesma maneira. Uma cidade deserta, um fim de tarde encoberto, um céu que prometia chuva. Ele andava, andava sempre, sem rumo, comandado por uma vontade silenciosa que o impelia ao encontro da morte. Acabavam sempre com ele a morrer. Ou eram os órgãos que falhavam, um por um, o corpo a contorcer-se em agonia enquanto a morte lhe paralisava o coração, os pulmões a lutarem por inspirar uma última vez, um grito para sempre silenciado e as lágrimas a correrem livres, lágrimas de puro pavor, lágrimas de quem sabe que vai partir e não teve tempo de viver, lágrimas de quem perdeu a última coisa que lhe restava. Ou era o carro que guiava que se despistava numa curva e caía num precipício sem fim, deixando-lhe apenas o gosto amargo do arrependimento, ele que nem sequer sabia conduzir, e se tivesse travado, e se tivesse escolhido outro caminho, e se não tivesse saído de casa, deixando-lhe a inevitabilidade de quem não pode voltar atrás e não tem qualquer outra escolha, de quem sabe que são os últimos segundos de uma vida vazia que se precipita no vazio maior da morte. Ou era o bando de meliantes que o degolava e o deixava caído a esvair-se em sangue, sangue a jorrar aos borbotões, enquanto ele procurava desesperadamente deixar um adeus, uma mensagem de despedida, umas últimas palavras, escritas no chão com o próprio sangue que lhe saía do pescoço em golfadas, os dedos vermelhos e trémulos a tentar compor uma derradeira frase, a vida a abandonar-lhe o corpo. E em todos eles não havia nunca ninguém para lhe segurar na mão, para lhe dizer que não ia doer mais, que ia ficar tudo bem. Morria sozinho. Nascemos e morremos sozinhos.

Só tinha uma vida para viver e para ali estava, a desperdiçá-la, com medo da morte. Já não sabia, na verdade, se tinha mais medo de morrer de ou de viver naquela eterna solidão.

Engoliu duas lágrimas, pôs uma acha de lenha na larera, espevitou o fogo, o lume a entrar-lhe pelos olhos, pelo nariz, pela boca, a afoguear-lhe o corpo por inteiro, a torná-lo todo ele labareda. Pensou em como seria fácil chegar fogo aos pesados cortinados de veludo que sempre detestara, reduzi-los a cinza, reduzir a casa inteira a cinza e com ela a solidão, os velhos terrores que hoje lhe faziam companhia, deixar que as chamas se encarregassem de tudo aquilo que ele não tinha coragem de fazer. Deteve-se quando da poltrona de orelhas veio a voz do pai, o pai que equilibrava os óculos na ponta do nariz para poder ler o jornal, o pai que o sentava nos joelhos e juntos descodificavam as palavras cruzadas, o pai que todas as noites o abençoava para que nada de mal lhe acontecesse enquanto dormia, o pai que em março faria setenta e quatro anos, não fosse ter sido atropelado há mais de vinte. 

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