Choro


Estava outra vez a chorar. Aquele som agudo e contínuo, que lhe entrava pelos ouvidos e lhe amachucava o cérebro, a aumentar de intensidade, a tornar-se insuportável, um som de desespero quase a roçar a raiva. Porque é que não cuidas de mim? Levantou-se a medo, avançou devagar, um passo, depois outro, em bicos de pés, uma sombra a deslizar pelas paredes, quase como se temesse que ele desse conta da sua presença. Ele ali estava, deitado no berço, estava sempre ali, em todo o lado, a encher a casa com os seus gritos e o cheiro a pó de talco. Chorava tanto, porque é que ele chorava tanto? O pequeno rostinho crispado a ficar cada vez mais e mais vermelho, um choro sem lágrimas que quase o asfixiava, as perninhas cheias de roscas e os pés pequeninos a agitarem-se no ar. Porque é que não cuidas de mim?

Tapou os ouvidos com força, apertou a cabeça nas mãos. Recuou dois passos e o olhar tropeçou sem querer no espelho. A cara inchada e pálida, o corpo deformado. Os círculos negros nos olhos e na alma, toda ela negra. Não sabia quem era aquela pessoa no espelho nem o que pretendia, não fazia ideia de quando iria recuperar a sua verdadeira identidade, se é que alguma vez isso seria possível. Sentou-se no chão e começou também ela a chorar, primeiro baixinho, um lamento em surdina, depois mais alto, o desespero a sair em golfadas, a competir com o som agudo e contínuo que entretanto se extinguiu.

A solidão. A solidão queimava. 

Tinha sido um parto longo e penoso, todas aquelas horas comida de dores, a contorcer-se agarrada à cama, às paredes, ao chão. Aquele som agudo e contínuo a indicar que tudo tinha terminado já, o corpo a dizer-lhe que mesmo rasgado estava tudo bem, não sentia nada já, nem dor, nem alívio, nem alegria, nada, absolutamente nada, nem mesmo quando lho pousaram nos braços, o olhou pela primeira vez e, de repente, ele parou de chorar.

Tantas inseguranças, tantos medos, tantas perguntas e um vazio tão grande de respostas. Não era pessoa que gostasse de mudança e esta era, de longe, a maior que alguma vez atravessara. Quando é que tudo ia voltar a fazer sentido? E esta tristeza quando passava? Roía-a por dentro, não deixava espaço para mais nada, onde deveria haver amor só existia angústia. Não tinha ânimo nem para entrar na banheira, vestir uma roupa limpa, só queria arrumar-se entre os lençóis, fechar os olhos e dormir, esquecer, desaparecer. Se ao menos ele parasse de chorar. 

Odiava todos os instantes em que não era capaz de lhe tocar. Odiava as paredes daquela casa que era agora uma prisão. Odiava-se todos os dias, a cada minuto. E tinha a certeza, dolorosa, pungente, de que o marido a odiava também.

Enxugou os olhos, engoliu duas lágrimas, fungou repetidas vezes, o corpo a estremecer com os últimos soluços. A parede amparou-a, ajudou-a a pôr-se de pé, a suster-se, encaminhou-a de encontro ao som agudo e contínuo que deixara de se fazer ouvir. Estava muito quieto, os braços e pernas tinham deixado de se agitar no ar, tinha os olhinhos fechados e respirava tranquilamente. Demorou-se um longo pedaço a olhá-lo, a absorver cada centímetro de pele do pequeno corpo, a inspirar aquele cheiro que todos os bebés exalam. Talvez, pensou, talvez possamos entender-nos. Talvez possamos ser amigos, gostar um do outro. Talvez nem tudo seja mau. Respirou fundo, estendeu o braço, hesitou, ensaiou uma carícia ao encostar a mão que tremia à perninha cheia de roscas. Ele abriu os olhos, pestanejou uma, duas vezes, bocejou longamente e, de repente e sem aviso prévio, começou a chorar.

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