Precisar


E de repente sentiu-se tão vulnerável. Exposta. Como se a despissem ali mesmo e lhe vissem o que trazia dentro. Nunca se tinha mostrado assim a ninguém. O corpo muitos idiotas haviam visto, mas nunca ninguém lhe tinha lido a alma. E todas as dúvidas do mundo a consumi-la.

Desceu a rua devagar, puxando olhares pelo caminho. De cobiça, vazios, de quem olha mas não vê. "O essencial é invisível aos olhos." Nunca a tinham visto até então. O sol estava parcialmente coberto pelas nuvens, o frio não chegava aos ossos e o corpo pediu-lhe um momento. Sentou-se no degrau empedrado, os pensamentos em desordem, quase lhe apeteceu fumar um cigarro. E ficou ali a cismar.

Precisava de chorar ou de escrever. Deixar sair o vazio, transformá-lo noutra coisa qualquer, palpável, real. Pedir ao tempo que lhe emprestasse umas horas, uns minutos, apenas o suficiente para perceber onde queria estar. Pegou no telefone que tinha sido uma extensão de si mesma nos últimos meses e atirou-o para o lixo. O corpo arrefecera-lhe entretanto, as nuvens já tinham coberto por completo o sol.

O silêncio já lá estava quando entrou em casa. Pousou as chaves no velho aparador que pedia repouso, libertou-se do casaco e pegou numa das muitas canetas espalhadas ao acaso na gaveta da cozinha. Precisava de escrever ou de morrer.

Faz de conta que és só meu. Sou teu como nunca fui de ninguém. Consegues sentir? O que significa afinal pertencer? 

Anoitecera. A lâmpada hesitou, piscou debilmente, primeiro uma, depois duas vezes, até que desistiu de viver e exalou um suspiro que a deixou na escuridão. Tacteou até encontrar um coto de cera enegrecido, riscou um fósforo, a luz voltou a preencher o espaço, as manchas de humidade na parede, as sobras do almoço, uma orquídea a definhar num vaso de plástico. Precisava de morrer ou de dormir. 

Aquele momento em que o tempo parou. Como se de repente tivesse algum tipo de superpoder. Em que não sabia precisar se os segundos tinham congelado ou se era o pensamento que estava a mil.

Os lençóis eram frios, não aqueciam o corpo nem convidavam ao sonho. Na mente martelavam-lhe todas as palavras que ainda não tinha escrito, tudo o que ainda tinha para dizer, aquilo que receava não saber expressar. Espantou a insónia com um livro, arrumou a cabeça na almofada e deixou que o torpor a invadisse.

E era a irmã morta no chão da casa de banho, e era o silêncio, o frasco de comprimidos desmaiado a seu lado, e era a angústia, os gritos mudos, todas as perguntas do universo por fazer, sem resposta, para sempre sem resposta, e era a solidão e o medo de nunca mais conseguir voltar a dormir sem ver o corpo inerte da irmã, encolhido nos azulejos gelados, teria sofrido? Sozinha, a irmã morrera tão sozinha. 

Precisava de dormir ou de simplesmente nunca mais acordar.     

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