O Manel da mercearia


Recolheu o dinheiro da caixa com vagar, alisou as notas, empilhou as moedas no balcão. Esticou o corpo encarquilhado, empurrou os óculos que teimavam em deslizar pelo nariz e pensou, pela terceira vez naquela semana, que o negócio já conhecera melhores dias. Apagou as luzes com um suspiro resignado, ligou o alarme, fechou a porta à chave. O estômago pedia comida e as pernas descanso. Subiu os lanços de escadas até ao terceiro andar e esperou uns minutos antes de entrar em casa, num jogo mental inventado por ele e que há anos jogava sozinho. Como seria se não fosse a mulher a estar atrás daquela porta? O que haveria na mesa para o jantar? E se aquela vida que era a sua tivesse sido diferente? Eram uns minutos apenas em que se permitia sair dele mesmo, dos dias iguais a todos os outros dias, do negócio que ia de mal a pior, dos tachos vazios na cozinha, da mulher que o esperava, como sempre, sentada no sofá.

Debicava a sandes de pão duro e fiambre e, enquanto enganava a fome, ia espreitando a mulher pelo canto do olho. O tempo passara e deixara as suas marcas e já pouco restava da rapariga a quem um dia pedira que se tornasse sua mulher. Desde pequena que lhe chamavam Teresinha, como as rosas, e o diminutivo pegou e foi ficando, mulher feita, os anos a imprimirem-lhe rugas no rosto e continuava a ser Teresinha, o cabelo muito liso a emoldurar-lhe a cara redonda, o corpo que transbordava já dos vestidos. E ali passava os dias amarrada ao sofá, presa à casa de onde quase nunca saía, refém daquelas paredes onde ressoava o eco das vozes dos filhos que nunca tinham chegado a ter. Devolveu ao guardanapo as migalhas que entretanto lhe caíram no colo e lembrou-se, uma vez mais, do quanto a tinha odiado por isso, até do ódio nada mais restar para além de uma amarga indiferença.

As manhãs começavam sempre da mesma maneira, a escuridão a entrar ainda pelas frinchas dos estores, os ossos a doerem e a pedirem mais uns minutos de cama. Libertava-se dos lençóis quentes onde a Teresinha havia de ficar a ressonar ainda um bom par de horas e, no chuveiro, devolvia ao corpo alguma da dignidade que lhe restava. Vestia a camisa que tinha engomado na noite anterior e penteava-se de forma a cobrir vaidosamente o cocoruto da cabeça, onde o cabelo há muito que rareava. No olhar via ainda o homem de outrora, o homem que era antes de as artroses lhe tomarem conta do corpo, antes do desencanto em que tinham mergulhado os seus dias, via o homem que era muito antes de se tornar no Manel da mercearia.

Tinha um gostinho especial por paixões proibidas, amores impossíveis, romances dignos de cinema. Em tempos também ele tinha vivido o seu, mas era-lhe tão penoso recordá-lo que só muito raramente se permitia pensar nisso. Quando o fazia, seguia sempre o mesmo ritual. Depois de jantar fechava-se no quarto e, das profundezas do armário, desencantava uma caixa de cartão que encerrava toda uma outra vida, tudo o que tinha sido e o que nunca poderia ser, memórias de um passado que para sempre o iria assombrar. Depois de ler a última carta e pousar os olhos na última fotografia vertia lágrimas gordas como só os velhos sabem chorar, soluçava durante horas a fio, chorava como chorara quarenta anos antes, quando um condutor embriagado pôs fim àquele que seria para sempre o grande amor da sua vida.

Soube que a queria assim que a viu e teve a certeza de que seriam um do outro após uma breve troca de palavras. Ela queria conhecer o mundo, fazer parte de algo maior, poder contribuir para alguma espécie de mudança e ele garantiu-lhe que, juntos, poderiam comer o mundo à dentada. Não trazia um cêntimo no bolso e nada mais tinha para oferecer que uma juventude repleta de sonhos e ilusões, mas ela tinha aquele jeito tão especial de olhar que o aquecia por dentro e o fazia ter a certeza de que nada mais precisaria na vida. Lembrava-se ainda de cada palavra trocada, do futuro que juntos haviam traçado, de como a sua mão assentava bem na curva das costas dela, do sorriso escancarado daquela boca perfeita que ela achava demasiado grande. Manuel tinha 20 anos e a certeza de que ficariam juntos para sempre. 

Com ela morreu a vontade dele de viver. Os dias oscilavam entre uma embriaguez turva e a sobriedade dilacerante e, de repente, foi como se tivesse envelhecido muitos anos. A barba por fazer emprestava-lhe o ar de quem há muito se abandonara, de quem arrastava o corpo de roupas encardidas num mundo do qual já não queria fazer parte. Até que um dia conheceu a Teresinha, a Teresinha com o seu cabelo muito liso a emoldurar-lhe a cara redonda, a Teresinha que ainda não transbordava dos vestidos. Ela passara há muito a idade de casar e ele estava ferido de morte, pelo que Manuel pensou porque não? Sabia hoje que a resposta certa seria exatamente igual à pergunta. Porque não. Estava dado o primeiro passo para, aos poucos, se tornar no Manel da mercearia.

Abriu a porta, desligou o alarme, ligou as luzes. Alimentou a caixa registadora, acomodou as caixas de fruta e legumes, passou um pano no balcão e ficou à espera. Tinha passado a vida inteira à espera. À espera que a vontade de viver voltasse, à espera que a mulher finalmente reparasse que ele existia, à espera de filhos, à espera de deixar de se sentir miseravelmente invisível, à espera de salvar um casamento moribundo, à espera de amor, à espera de ser mais que o Manel da mercearia, à espera, sempre à espera. Uma vida inteira à espera para descobrir que, afinal de contas, ninguém o esperava a ele. Empurrou os óculos que escorregavam, escondeu as mãos nos bolsos, deteve-se à porta da mercearia que continuava vazia. No bolso o telefone deu sinais de vida. Era a mulher a pedir-lhe que não se esquecesse de levar fiambre para casa.

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