O Berguilhas - parte 3





O mundo tinha amanhecido diferente. Estava tudo de pernas para o ar e ele não sabia como viver no caos, não conhecia outra realidade para além daquela onde os papéis estavam arrumados na gaveta e o teclado e o rato alinhados. Não saía de casa fazia hoje quinze dias. As ruas estavam desertas, transpiravam solidão. À solta andava um bicho invisível, diziam. O Berguilhas colava os olhos ao ecrã do televisor e esforçava-se por entender o que diziam os médicos, os políticos, os jornalistas, os especialistas disto e daquilo, numa avalanche diária de palavras sem fim em que nenhuma lhe fazia sentido. Pandemia, isolamento, quarentena, restrições, contenção. Era então isto um estado de emergência. De dentro dele emergiam estados a que nem sabia dar nome. 

Preparou o jantar, pôs a mesa para um. Engoliu a custo o atum e o feijão, empurrou com um copo de água da torneira, lavou a loiça com o velho esfregão. Apetecia-lhe um cigarro sem nunca ter fumado na vida. Apetecia-lhe o whisky que lhe queimara as entranhas e o fizera vomitar a camisa desalinhada, o cinto, os sapatos coçados a imitar pele, a dignidade que não tinha. Apetecia-lhe o corpo de uma mulher. Nunca, numa vida inteira de solidão, se tinha sentido tão só. 

O telefone tocara até então uma única vez. Do outro lado da linha reconheceu de imediato a voz do patrão, áspera, mal-educada, a dar-lhe conta de que a empresa ia entrar em lay-off. O Berguilhas não compreendeu o que aquilo queria dizer, mas teve vergonha de perguntar por receio de que o patrão o achasse estúpido. Pensou na Carminho. Sentia falta de olhar para ela todos os dias, de a ver chegar ao escritório a bambolear o corpo arrumado numas calças muito justas, da forma como mordia a ponta da caneta quando falava ao telefone ou brincava com as mechas do cabelo tão negro como a asa de um corvo. Gostava de poder ligar-lhe a saber dela e deleitar-se com aquela voz rouca que lhe roubava o sono, mas impedia-o a cobardia, alimentada pela certeza de que ela nem o nome dele sabia.

Agora, mais do que nunca, os dias repetiam-se.

Vestiu uma camisa lavada, afivelou o cinto, puxou para trás o cabelo empastado em brilhantina e perguntou-se, pela primeira vez em quase vinte dias, para quê. Para quê? Porque não haveria de passar os dias e as noites refém do pijama, a flanela a consolar-lhe o corpo, as pantufas gastas pelos anos de fiéis serviços, o abandono que o roía de dentro para fora? Se já era invisível antes, em que é que se tornara agora? Não havia ninguém, absolutamente ninguém que sentisse a sua falta. 

As discussões eram agora mais acaloradas do que nunca no segundo andar e nem o infame vírus poderia eliminar o fedor a fritos do terceiro. No seu passinho apressado, o Berguilhas aventurou-se a descer as escadas e, à porta do prédio, hesitou, deteve-se uns segundos, apenas o suficiente para respirar fundo e de repente estava na rua. Andou por andar, à deriva naquela cidade esquecida por Deus, a sentir-se a última pessoa à face da Terra. As pernas, que a princípio demoraram a obedecer-lhe, seguiam soltas, como se tivessem uma importante missão a cumprir. O ar enchia-lhe os pulmões de forma diferente, agora que as fábricas tinham deixado de vomitar fumo. A remexer nos caixotes do lixo encontrou um gato, o primeiro ser vivo que via em semanas. A desconfiança no olhar vadio e no pequeno corpo malhado, a curiosidade felina a falar mais alto enquanto erguia para ele o focinho. Acercou-se em passos cautelosos e um miado agudo rasgou o silêncio. Voltou a sentir o ímpeto, aquele terrível ímpeto, a vontade premente, a certeza de que aquela vida dependia apenas da sua vontade, hipnotizado passou a mão pelo lombo eriçado do bicho, os dedos alcançaram o pescoço, apertou com firmeza, sem se deter, apertou sem sentir as unhas afiadas em desespero de sobrevivência, apertou até nada mais restar que um corpinho felpudo inerte e ele, dono e senhor da vida. 

O Berguilhas pestanejou, o gato ainda o olhava, ensaiou uma aproximação e o animal correu até desaparecer de vista.   

Acordou a sentir-se febril. Levou a mão à testa que escaldava, os arrepios a tomarem-lhe conta do corpo. O vírus tinha-o apanhado, estava certo disso. Ia morrer ali sozinho, naquela casa escura repleta de latas de atum com sabor a solidão. Era então assim que tudo acabava? Soergueu-se nos lençóis encharcados, passou a língua nos lábios gretados e descobriu que tinha sede. Levantou-se como pôde e arrastou a febre até ao lavatório, onde bebeu com sofreguidão antes de as pernas darem de si e se estatelar no chão de azulejos.            

A febre começou ao ceder ao fim de uma semana de cama e delírios profundos. Tinha sobrevivido. Estava vivo e descobriu que queria viver. Tinha saudades do autocarro de janelas gordurosas, de ser o primeiro a chegar e o último a sair do escritório, de arrumar os papéis na gaveta e de alinhar o teclado e o rato. O mundo lá fora permanecia vazio, os especialistas continuavam a dizer coisas incompreensíveis na televisão, as pessoas mantinham-se fechadas em casa, numa tentativa desesperada de escapar a esse vírus maldito. Esse bicho invisível que lhe tinha entrado no corpo e a quem ele dera luta, que ele conseguira expulsar, estava livre, estava a salvo. O Berguilhas abriu a janela, o ar frio a arrepiar-lhe o corpo ainda em convalescença. E a solidão? Quem poderia salvá-lo da solidão?

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